Daniel Campos

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Encontrados 362 textos. Exibindo página 32 de 37.

18/11/2008 - Cuspidor de fogo

Era só mais uma fração de segundo. Era só mais um ato banal. Era só mais um dia depois de outro dia. E aquele cuspidor de fogo não podia falhar. Na sua cabeça, as náuseas das vezes que engasgou, que se machucou, que não levou aplausos. Agora tinha de ser diferente. Olhou à platéia, à vida, às feridas e soprou. Uma chama cortou o circo, queimou a lona, acabou até com o sorriso do palhaço que já andava sem graça. As crianças se assustaram, os garotos aplaudiram e as mulheres choraram de medo e dor....
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13/11/2008 - Chover em paz

A tarde vai caindo e com ela, uma chuva inesperada. Uma chuva fina, fria, bailarina. Cai em pontas, mas como uma delicadeza capaz de arrancar aplausos. Aos poucos, o sol torna-se negro e cede espaço para a água. Agora, não sei se ele deixa o tablado por ato de cavalheirismo ou por medo de se molhar. O fato é que aos poucos a chuva vai calando a rua, entre o concreto e o imaginário, dando um ar daqueles filmes europeus ao nosso tropicalismo.

Com a mudança de clima, as sombrinhas e guarda-chuvas aparecem às pencas. E o que era para dar mais cor e classe ao espetáculo das águas torna-se um ato melancólico. As sombrinhas trombam uma nas outras, as varetas dos guarda-chuvas espetam o rosto alheio, a água acumulada é chacoalhada em cima dos outros passantes... Um verdadeiro circo de horrores acaba com a beleza da chuva entardecida que, envergonhada, vai embora. ...
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09/11/2008 - Clemência, Clementina

As estrelas suavam de calor. O escuro da noite pesava. A falta de vento asfixiava, cometendo tentativa de homicídio. Depois de Roberto Carlos, Milton Nascimento e Gonzaguinha, chegou Clementina na roda dos meus ouvidos. Há tempos ninguém ouvia falar dela. Mas ela chegou. Foram chamá-la e agora, estava aqui, em renda e voz. Era por volta de onze horas e trinta minutos da noite quando aquela África dos morros cariocas desceu, subiu e entrou em casa com sua voz forte e negra:

?Eu não sou daqui ...
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06/11/2008 - Cantoria

Mais do que um grito, o meu canto é uma súplica contra a morte do dia-a-dia. Feito cigarra, quero explodir de amor, de fantasia e de outras intensidades musicais, ou seriam sentimentais? Feito soldado que vai para os campos de batalha, quero duelar o meu sonho e cantar a minha guerra. Feito trovador, quero espalhar minhas trovas olhos e luar afora. Feito quem chora, quero lançar meus sentimentos ao vento. Feito amora, quero manchar a boca de quem devora meus versos, e me doar pelo avesso num desejo sem paga ou preço. Ah! Quero ser a serenata que passa debaixo da tua janela arrancando de tua boca um sorriso envergonhado. ...
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04/11/2008 - Chega de ilusão

É hora de arrumar as malas. O mundo vai acabar amanhã. E o que você vai levar? Sua falta de fé? Porque só embarcará quem conseguir enxergar além da superfície das coisas. Na outra dimensão, não existe o supérfluo. E tudo o que está a sua volta é ilusão. A matéria que forma os carros, as casas, os eletrodomésticos, as roupas, os corpos é moldada de acordo com interesses mundanos. Os coleguismos, amizades, transações comerciais não passam de ilusão. E ilusão negativa, obsessiva, destrutiva.
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29/10/2008 - Chuvareiro

No próximo temporal, vou quebrar tua sombrinha e meu guarda-chuva. No próximo temporal, vou levantar vela em plena enxurrada e convidar-te a partir. No próximo temporal, quero ser apedrejado e apedrejar na mesma proporção. No próximo temporal, vou conhecer a boca do lobo. No próximo temporal, vou chover ao vento. No próximo temporal, vou cair com as árvores. No próximo temporal, vou me revirar com as telhas. No próximo temporal, vou molhar a tua roupa, no teu varal ou no teu corpo.

No próximo temporal, vou cheirar a capim. No próximo temporal, vou fazer estátuas de barro e esperar que Deus venha soprá-las. No próximo temporal, vou atolar seu carro. No próximo temporal, vou me sujar como as crianças. No próximo temporal, quero um beijo molhado. No próximo temporal, vou inundar teu quarto, tua cama e teus sonhos mais distantes. No próximo temporal, vou chover canivete só para cortar a saudade que me corta. No próximo temporal, vou lamber-te num pé de vento e sair assoviando por aí. ...
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27/10/2008 - Coração partido sim

O coração tem marcas. Marcas de humilhações, marcas de desespero, marcas de dor. O coração de quem ama não é liso, perfeito, intocável. O coração de quem ama é partido para sempre. Porque o coração da criatura amada é apenas a parte de um todo, o qual se pode chamar de felicidade. Afinal, só se completa quando ao lado de outro coração. E por ser parte, de um projeto maior, dói. Dói a dor da saudade, que o marca a ferro e a fogo. Dói o silêncio de pulsar sozinho o seu pulso. Dói a intensidade do sangue jorrado. Dói de prazer. ...
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25/10/2008 - Cenarius

Farelos de pão sobre a mesa. Um cheiro de café solto no ar. Uma aranha tecendo a teia, nas conversas que ficaram por terminar. Uma cadeira vazia chorando alguém. O silêncio do pires. A xícara ainda tonta com os lábios que pousaram ali. E um pescador tentando fisgar um pouco de tempo, de tempo, de tempo. Ah! O mundo não pára. Mesmo sem querer, continua nos levando nas pás dos teus moinhos que vão moendo vidas de mansinho.

O perfume do amor sobre a cama. Lençóis amassados, molhados de sexo e suor. Os travesseiros sufocando os últimos gemidos. As colchas cruzando suas cores. A penumbra querendo enxergar ali de si própria. As cortinas comentando como duas fofoqueiras de beira de muro. E um pescador tentando fisgar um pouco de tempo, de tempo, de tempo. Ah! O mundo não pára. Mesmo sem querer, continua nos levando nas pás dos teus moinhos que vão moendo vidas de mansinho....
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11/10/2008 - Cem anos de um mundo tirado da cartola

Era uma vez um mágico franzino e negro, que andava com um chapéu-coco de construção em construção, de boteco em boteco, de acorde em acorde. Subia morro, arrastava sandália na periferia, olhava o mundo da janela de um barraco. Sua mágica era realmente boa, merecedora de aplausos. Afinal, vinha gente bronzeada lá da zona sul para ouvir as rimas e os arranjos daquele homem que pouco estudou. Até mesmo os intelectuais da canção se renderam a sua magia. E da cartola daquele mágico chamado Angenor de Oliveira nasciam uma flor, uma escola, uma favela, uma poesia, um jeito diferente de ver, de fazer e de viver o mundo......
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03/10/2008 - Caminhadura

Eu caminho contra o sol, seja a pé ou na boleia de um caminhão. Eu caminho no marca-passo coração, seja em pontes de safena ou injeções de adrenalina. Eu caminho no mar-alto da paixão, seja a bordo da arca de Noé ou dividindo as águas de Moisés. Eu caminho pelos tabuleiros, seja entre estradas de rainha ou espadas de rinhas. Eu caminho pelos romances, seja nas linhas dos livros da estante ou na canção que caminha solta pelo ar.

Eu caminho de sentença em sentença, seja na prisão de um tempo ou no cárcere da paixão. Eu caminho por entre uma declaração de amor, seja amor amado ou mais amado para valer. Eu caminho sem dó nem piedade, seja pela cidade ou pelo azulão do céu. Eu caminho poeticamente, seja de letra em pausa ou de rima em refrão. Eu caminho na corda bamba da esperança, seja equilibrando uma sombrinha ou um leão. ...
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