Daniel Campos

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18/11/2008 - Cuspidor de fogo

Era só mais uma fração de segundo. Era só mais um ato banal. Era só mais um dia depois de outro dia. E aquele cuspidor de fogo não podia falhar. Na sua cabeça, as náuseas das vezes que engasgou, que se machucou, que não levou aplausos. Agora tinha de ser diferente. Olhou à platéia, à vida, às feridas e soprou. Uma chama cortou o circo, queimou a lona, acabou até com o sorriso do palhaço que já andava sem graça. As crianças se assustaram, os garotos aplaudiram e as mulheres choraram de medo e dor.

O buraco na lona trouxe a lua para mais perto. E com ela, um deserto interior. Enquanto o público corria, o artista permanecia no meio do picadeiro em uma crise existencial. Antes tivesse sido malabarista, contorcionista, frentista, diarista, passista de carnaval. Mas não, quis logo o perigo ao seu lado. Antes tivesse ouvido o ditado antigo de que quem mexe com fogo faz xixi na cama. Ah! Mas era aquela chama que ele tanto amou, amava e ama.

O que seria de si? Artista sem circo? Cuspidor sem fogo? Bandido incendiário? Assustador de criança? Ao invés dos aplausos, os gritos. Ao invés dos contentes, os aflitos. Ao invés dos elogios, os pitos. A sua carreira acabava ali, mas não havia pranto. Ele ainda podia correr e achar um cruzamento, um sinaleiro, uma praça... Mas preferia ficar ajoelhado na serragem, olhando o fogo comer a paisagem.


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