Daniel Campos

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Encontrados 362 textos. Exibindo página 35 de 37.

Café com Cony

Desde muito cedo adquiri o hábito saudável de tomar café da manhã com Carlos Heitor Cony. O jornaleiro, antes mesmo de o galo gargarejar com as primeiras gotas de sol, atirava aquele amontoado de notícias contra a minha janela. Não sei como, mas ele tinha pré-disposição em me acordar. Acredito que ele, o jornaleiro, só tinha ânimo para sair de casa, lá pelas três horas da madrugada, e pedalar a bicicleta, que o deixava com as pernas suspensas, só pelo íntimo prazer de me acordar.

Podia estar sonhando no mais perfeito paraíso, mas o menino travesso insistia em me trazer para a realidade. Tinha medo de que minha alma, que ficava vagando de mundo em mundo, se assustasse com o barulho, nada sinfônico, produzido pelo beijo forçado entre manchetes do dia com as frestas da minha veneziana, e não mais encontrasse o caminho para voltar ao meu corpo. Cheguei a espiar o menino pelo portão, acordando mais cedo que ele, e pude notar o sorriso em seu rosto ao arremessar o jornal contra o meu sono. ...
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Caminho de dentro

Dentre tantos caminhos, nasci. E ao contrário de Drummond, não me lembro de nenhum anjo torto, daqueles que vivem nas sombras, vir me dizer alguma coisa. Nasci. Alguns anos de namoro na década de setenta. O casamento e mais algum namoro. Nasci. E era dia dez, como tantos outros dias dez. E era junho como tantos outros junhos. E não era feriado, não era dia santo, sequer era domingo.

Um dia normal, se é que os dias são normais. Ou melhor, era uma tarde normal, como tantas outras do século XX. O sol começava a procurar um esconderijo para que, quente de amor distante, pudesse admirar os fetiches da lua. Perto das cinco da tarde. Nem tão tarde para um desejo de boa-noite nem tão cedo para um desejo de bom-dia. Mas o momento exato para tantos outros desejos. Uma hora estranha com crise de identidade diante do tempo dos relógios....
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Caminhos

Eu caminho, tu caminhas, nós... A vida é feita de caminhos, caminhadas, caminhantes. Caminhos feitos de terra, de pedra, de mar, de céu, de mato, de fogo. Caminhadas feitas de procuras, esperas, encontros. Caminhantes feitos de sonhos e lembranças.

Nessa caminhada, independente dos acontecimentos, segue-se em frente. Nesse caminho não se vê muito adiante, uma espécie de cerração toma nossos olhos, portanto, sonhar é uma questão de sobrevivência. Os passos podem ser lentos ou apressados, estreitos ou largos, firmes ou fracos, mas são para frente....
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Carta à procura da felicidade

Pode falar e re-falar. Não me convence quando se diz feliz. Se o for, seu conceito de felicidade é tão restrito quanto seus argumentos. Tudo bem que não queira admitir, mas se enganar faz mal. Mal à saúde física e psíquica. A felicidade não se traduz numa vida mesquinha, àquela que parece perfeita. A felicidade feita só de risos é tão frágil que chega a inexistir. Sorrisos ásperos, amargos, ensaiados não me convencem. A felicidade sofre, chora e suplica como qualquer mortal. A felicidade não é uma deusa, uma santa ou qualquer outro ser mítico. A felicidade é humana. E todos os humanos são feitos de sofrimento. A felicidade é uma dádiva de poucos momentos. Momentos em que somos feitos de um sentimento bruto. E sorrisos não são as únicas formas desse sentimento escorrer. ...
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Cartas e cigarros

Deixou as cartas sobre a mesa e saiu à procura de um cigarro. Um cigarro de pirilume. Um cigarro de lua. Um cigarro de ópio. Um cigarro de si. Ela saiu pelas ruas esfumaçadas e encontrou, em cada esquina, uma ilusão mascarada e um futuro com a cara mais amarrada. Saiu atrás de um cigarro. Procurou nas bocas dos bêbados, dos porteiros, dos taxistas, das prostitutas, dos cafetões, dos garçons, dos policiais, dos violeiros, dos cozinheiros, dos pedintes e dos ouvintes daquela música que ela nunca escutou, mas que alguém havia feito para ela. ...
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Casulo

Sonhava em ter asas. Mas não eram quaisquer asas. Longe de suas costas a idéia de ter asas de pássaros, de anjos, de morcegos. Não queria asas de pluma, de penas, de couro. Queria asas finas. Queria asas de papel de seda. Tão finas a ponto de serem rasgadas por um vento mais afiado. E ultimamente, seu vento norte vinha com lâmina amolada. Eram tantos cortes que a vida vinha lhe fazendo. Profissionalmente, pessoalmente, religiosamente e romanticamente.

De chefes a namorados, de amigos a padres e pastores, de vizinhos a garçons, todos lhe cortavam um pouco. Fosse corte físico ou moral. Alguns cortam sua pele rosada, outros cortam a oitava camada de sua alma. As outras sete já estavam retalhadas. Mas isso não impedia que aquela menina sonhasse em ter asas de papel de seda. E em seu desejo, o papel e a seda também não eram comuns. Eram asas pintadas, bordadas, recortadas. ...
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Causos de mogi-mirim

Mais um causo para o folclore de Mogi-Mirim: o dia em que o governador veio para a cidade e o povo não viu. A cidade (a elite da cidade), o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o clima de festa. Embora não vi o governador, (assim como mais de 99% da população eu também não fui convidado), ficaram algumas dúvidas:

Quem veio para Mogi-Mirim foi o governador ou o governador que é candidato a governador? Pode parecer a mesma coisa, mas são duas coisas completamente diferentes, principalmente em política em pleno ano de eleições. Neste ano em que não faltam campanhas políticas, é bom lembrar que somos vistos como votos e não como pessoas. ...
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Chamamento

De repente, como aquela promessa que os sonhos sempre lhe fizeram e que já dava por vencida, ela surge. Se ela fosse uma promessa, ela seria cumprida quando não se acreditasse mais. Se ela viesse por uma rua deserta, quando ela passasse a rua se encheria de lembranças. Saudades de todas as formas e tamanhos. Se ela surgisse do nada como surgem coisas que não se explicam ninguém se assustaria. Impossível se assustar com uma presença, a primeira vista, tão leve. O que importa é que ela surge com os olhos cheios de mar e céu....
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Cheiro da chuva

Como é bom sentir o cheiro da chuva. Cheiro da chuva? Aprendemos na escola que a água matéria-prima da chuva) é inodora, ou seja, não tem cheiro. Então como explicar o aroma que se instala em nossas narinas quando acontece de chover?

Alguns dizem ser o cheiro da poeira presente no ar, na terra, ou ainda, fruto da poluição. Mas não o creio. Contrariando a química, a biologia, e os sabichões, afirmo: a chuva possui cheiro.

Clarões, nuvens negras, trovões... Vem o cheiro de chuva e nos avisa dos primeiros pingos. O aroma que a anuncia é diferente do odor que fica após a chuva. O primeiro aroma é mais rústico, invade nosso pulmão sem pedir licença, chegando a ter notas secas. O segundo é o mais intenso, aquele que cala fresco e doce, mas com direito a uma brandura infinda. Quando a chuva acontece em sua plenitude, o aroma que invade o nosso buquê nasal é a mistura entre o rústico e o fresco, entre o seco e o doce, entre o autoritarismo e o delicado. ...
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Coisas de inverno

Chove miúdo. Uma vontade de inverno surge na tarde escura. Uma colcha de nuvens de várias tonalidades. A janela aberta ao vento leve. Um vento que marca. Aquele que não passa sem ser percebido. A lâmpada do quarto acesa e uma sensação de felicidade triste. Se é que isso existe. Os pingos caem nas calhas em feitio de notas de piano. Um querer ir para a cama e se encher de cobertores. Ou então de abrir o guarda roupa e pegar roupas de lã. Se bem que nunca gostei de roupas de lã.

Tempo com cheiro de guardado. Um chá quente. Bem quente. Um bom disco de inverno. Quem sabe camomila com João Gilberto. E um bom livro, mas algo curto, como alguns contos ou algumas poesias. Um romance pode ser muito arriscado. Se a leitura for muito longa e densa pode demorar mais do que o inverno. O ideal é que entre um gole de chá, uma música e uma poesia, os olhos escorram pela janela e se atirem aos braços do frio. ...
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