Daniel Campos

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Casulo

Sonhava em ter asas. Mas não eram quaisquer asas. Longe de suas costas a idéia de ter asas de pássaros, de anjos, de morcegos. Não queria asas de pluma, de penas, de couro. Queria asas finas. Queria asas de papel de seda. Tão finas a ponto de serem rasgadas por um vento mais afiado. E ultimamente, seu vento norte vinha com lâmina amolada. Eram tantos cortes que a vida vinha lhe fazendo. Profissionalmente, pessoalmente, religiosamente e romanticamente.

De chefes a namorados, de amigos a padres e pastores, de vizinhos a garçons, todos lhe cortavam um pouco. Fosse corte físico ou moral. Alguns cortam sua pele rosada, outros cortam a oitava camada de sua alma. As outras sete já estavam retalhadas. Mas isso não impedia que aquela menina sonhasse em ter asas de papel de seda. E em seu desejo, o papel e a seda também não eram comuns. Eram asas pintadas, bordadas, recortadas.

Em suas asas, o luxo de um passista de escola de samba em pleno dia de desfile. Em suas asas, um desenho que não cabe naquelas réguas geométricas, vazadas de triângulos, hexágonos e retângulos, que se tem quando criança. Em suas asas, a textura que só alguns bichos de seda são capazes de produzir. Se não me engano, bichos de seda de uma pequena cidade francesa. Talvez Marselha. Talvez Le Mans. Talvez Santa-Reparata-di-Moriani. Talvez...

Há anos ela sonhava em ter asas. Já havia feito pedido para estrela cadente, jogado moeda na fonte dos desejos, rezado e se concentrado 10 minutos de seu dia em suas asas, como lhe aconselhou um professor metido a psicoterapeuta. Aliás, ela passava mais de dez minutos pensando nas asas. Passava praticamente o dia todo. O que era um sonho tornou-se uma obsessão da pior espécie. Pior para quem não a entendia. Ela chegava da faculdade (fazia biologia para entender melhor o seu sonho) e ia para o quarto. Tomava um banho, esfregava, sobretudo, as costas com um sabonete das flores do cerrado. Diziam ser excelente para os seus propósitos. Em seguida, colocava uma música baixinha. De preferência algo instrumental e deitava na cama de bruços, vestida só com uma das peças íntimas. A de baixo. E era sempre branca, fina e com algumas pequenas borboletas de renda.

Tinha sete borboletas tatuadas pelo corpo. Algumas coloridas, algumas em preto-e-branco. Tudo fazia parte de um ritual. Na cama, ficava imaginando suas asas. Asas de cores vivas, fortes, e até, abusivas. Dias pensava nelas azuis, dias rosas, dias amarelas, dias negras... A cor dependia de seu estado de espírito. Em suas asas, uma tela abstrata, um labirinto, números para estimular os mais sortudos a jogar no bicho. Dali da cama, olhava fixamente para um quadro com borboletas secas afixadas com alfinetinhos na parede. Uma coleção de borboletas fora e dentro de si. Queria asas de borboleta.

Dali da cama, aquela menina ficava olhando as borboletas e imaginando no corpo de cada uma delas. Se a vida de borboleta fosse curta como dizem os cientistas, não importava. Queria ser borboleta, ao menos, por alguns minutos. Estava convicta de que entregaria toda a sua vida em troca de duas asas de borboleta - por mais efêmeras que essas asas fossem. Talvez porque seu sonho fosse demais. Talvez porque sua loucura fosse demais. Talvez porque sempre fora lagarta demais. Nunca foi a menina mais bonita da escola, nunca foi a melhor jogadora do time de vôlei, nunca teve o namorado que sempre quis, nunca foi tratada como queria ou até como julgava merecer. De fato, estava mais para lagarta do que para borboleta.

Ela fixava o quadro, com olhos vidrados. Queria mudar, nem que fosse uma mudança sem volta. Salpicava nas costas um pó dado por um índio, falava algumas palavras ensinadas por uma cigana de tenda, respirava como achava que respiravam as borboletas e ficava ali à espera das asas... E no meio de todos aqueles ritos e encantamentos, vinha um sono e ela se enrolava em lençóis, numa espécie de casulo, e ficava naquela cama como uma borboleta em gestação.


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