Daniel Campos

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Caminho de dentro

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Dentre tantos caminhos, nasci. E ao contrário de Drummond, não me lembro de nenhum anjo torto, daqueles que vivem nas sombras, vir me dizer alguma coisa. Nasci. Alguns anos de namoro na década de setenta. O casamento e mais algum namoro. Nasci. E era dia dez, como tantos outros dias dez. E era junho como tantos outros junhos. E não era feriado, não era dia santo, sequer era domingo.

Um dia normal, se é que os dias são normais. Ou melhor, era uma tarde normal, como tantas outras do século XX. O sol começava a procurar um esconderijo para que, quente de amor distante, pudesse admirar os fetiches da lua. Perto das cinco da tarde. Nem tão tarde para um desejo de boa-noite nem tão cedo para um desejo de bom-dia. Mas o momento exato para tantos outros desejos. Uma hora estranha com crise de identidade diante do tempo dos relógios.

Nasci. E como eu, outros tantos nasceram naquela tarde. Outros tantos que a vida se encarrega de não nos deixar conhecer. Não me lembro dos sons, das visões, mas alguns passos andavam de um lado para o outro, algumas mãos se embrenhavam em terços, alguns olhos, simplesmente, viam a tarde cair.

A tarde caia junto ao trânsito, junto às pessoas que passavam. Passavam sem se importar com as dores do parto. Nasci. E se preciso for, peço desculpas pelas dores do parto. Nasci.

Mil novecentos e oitenta. Nasci e infelizmente o mundo, também no ano de 1980, perdia um sambista e um poeta. Dia dez de junho de mil novecentos e oitenta, ainda havia um pouco de sol, ainda havia o prefácio da lua, ainda havia um pouco do perfume das rosas de Cartola, ainda havia um pouco de uísque, sem gelo, na espera por Vinícius. E ainda havia um tempo, ou uma deusa ou um estado chamado vida, que, sem mais demoras, esperava por mim.

Sem que houvesse marcado qualquer encontro, essas coisas de data, hora, local... ela, a vida, esperava-me. Nasci. Uma cidade do interior. Pequeno rio das cobras. Caminho das bandeiras. Cidade, sobras de um passado. Sobras de uma elite rural. Não importa, Mogi Mirim registrava mais um nascimento nas páginas burocráticas da história.

Nasci por alguma razão ou por alguma falta de razão. Os primeiros movimentos e as estampas do mundo em mim (sobre mim), talvez estejam escondidos em algum lugar proibido do emaranhado das minhas lembranças. Um lugar proibido. Quem sabe um dia ainda eu possa entrar e descobrir a tatuagem que a constelação de gêmeos fizera em mim. Quem sabe um dia.

Chega de datas. A vida fica sem graça rodeada de números, presa em espaços limitados, posta em ordem. Não vou citar mais anos, meses, dias, horas... Citarei apenas a vida em si. E a partir do nascimento, não importa se cresci ou se morri, importa apenas que vivi.

Vivi com um cachorro que dormia debaixo do meu berço. Um berço que tinha alguns tons de amarelo, um cachorro que tinha um sorriso que na época não soube entender. Apenas vivi com aquele sorriso perto. E depois daquele cão, foram muitos outros. Foram e são muitos outros. Vivi e aprendi a conversar no silêncio dos cães.

Para não fugir dos animais, tive o privilégio, quando bebê, de ter tido uma vaca. Não que realmente eu tivesse comprado uma vaca em leilão e a colocado dentro de casa. Um dia o leite materno se acaba e desde então surge o ensinamento de que nada é para sempre. Fui um privilegiado, afinal meu avô selecionou uma vaca exclusiva para mim. Prazeres da vida rural. Eu dividindo o leite com um bezerro. Nada mais injusto para o bezerro. Vivi e não pude recompensar o bezerro. Um bezerro que esqueci o nome.

Coisas do sítio. Vivi com os pés na terra. Aliás, meus pés foram plantados naquela terra. Uma sensação indescritível a de viver com os pés entregues a terra. Embora nunca fui e nunca pretendi ser boiadeiro, toquei gado. E como era bonito o movimento daquelas vacas, na mesma marcha, no mesmo cordão, na mesma miscelânea de cores. Cada qual com o seu nome, cada qual com o seu passo. Quantas as plantações e as colheitas que ganharam minhas mãos, mesmo que num papel coadjuvante. Quantos os gostos que se espalharam pelo fogão à lenha. Em minha pele, o cheiro de café e o doce da cana. E nunca morei no sítio. Vivi e o sítio era um quintal, uma vida, um tempo que, ainda bem, não se acabou. Essas coisas que andam num caminho de dentro não se acabam. Vivi e aprendi a amar aquela terra feita de tantos e quantos sentimentos. Sentimentos guardados e que brotam numa simples chuva. Se bem que chuva chuvisqueiro chuvarada nunca são simples.

Vivi e meus ouvidos foram se acostumando a Tom e outros menestréis que meu pai ouvia. Hoje, a música se mistura ao meu cotidiano. Não que eu viva profissionalmente da música. Tenho-a como uma amante, que me acolhe em todos os momentos. Embora não vivi a bossa nova, embora não vivi os festivais e a jovem guarda, embora não vivi o tropicalismo é como tivesse passado por tudo isso. Os barquinhos, a falta de flores, os carrões, as tropicálias... Tenho todo esse mundo mágico caminhando dentro de mim. Ao ouvir essas músicas é como se tivesse acesso a esse mundo impregnado de magia e encontrasse uma parte de mim que não se acha nas veias de concreto da realidade. Desde já, os meus agradecimentos aos magos da música e a meu pai, que colocou este mundo perto de mim.

As histórias. Cresci ouvindo histórias. Não só as histórias dos três porquinhos, mas todas aquelas lendas que rodeavam as lembranças dos meus avôs. Saci, mula-sem-cabeça, lobisomem, boitatá... Histórias que viviam sem ser preciso folhear páginas de livros. Aliás, naquelas histórias, a vida folheava a própria vida. E era natural se encantar com tudo aquilo, era-se criança. O tempo se foi e um adulto continua a se encantar com aquelas histórias. Em certos momentos a vida não precisa de explicação.

Vivi e não me lembro dos golpes, do DOPS, não me lembro da volta do irmão do Henfil. Não me lembro das imagens, lembro-me apenas do silêncio da ditadura. Um silêncio pesado. Para certas passagens da vida, faltam imagens e sobram sentidos. O silêncio pesado da ditadura. Talvez esse sentimento seja maior que as imagens do movimento das diretas, dos fiscais do Sarney, do impeachment de Fernando Collor... O silêncio pesado da ditadura... Tempos em que o jornal ainda não fazia parte do meu café da manhã.

Fui pela vida sem time de futebol. O que era comum toda criança com uma paixão por um determinado time e uma bola debaixo do braço não foi comum em mim. Não vivi os gramados, vivi o asfalto das pistas de fórmula-1. Tive a sorte de viver uma parte romântica do automobilismo. A minha relação com Ayrton Senna da Silva. Magia ou devoção, não sei explicar.

Domingo, dia de corrida. Não importa se oito, nove, nove e meia (no caso de Mônaco), dez, uma da tarde, duas da tarde ou se de madrugada (Japão e Austrália). Seja lá qual fosse à hora, lá estava eu e a televisão. E no caso de algum problema de energia ou de sinal, lá estava eu com um radinho de pilha. Coisas de torcedor. Acordava cedo, olhava o que havia de Senna nos jornais e ia à frente da TV. Uma concentração digna de um piloto de Fórmula-1. Eu e os motores. O barulho dos motores. Só fui saber a dimensão exata (se é que existe dimensão exata) do barulho, ou melhor, do ronco dos motores, quando pisei no circuito de Interlagos. Os extremos. A primeira vez que pisei em Interlagos e a última corrida de Ayrton ali. O tempo se encarrega da saudade. De volta à corrida, na sala da minha casa, da volta de apresentação até a bandeira quadriculada, os meus joelhos ficavam no chão. Numa espécie de culto, assistia a corrida de joelhos. Como disse anteriormente, muitas coisas na vida não necessitam de um porquê. Vivi e nunca me esqueci do gosto do champanhe que Ayrton Senna estourava no pódio. Determinados gostos, a gente não se esquece. E por falar em gostos, o bolinho de chuva de minha avó tem um lugar especial nessa galeria.

Caminhando para o período escolar, não me lembro do pré, lembro-me de alguns cheiros do pré. E cheiros não deixam de ser gostos. E a memória vai se doando mais e mais ao longo dos anos. O ensino fundamental, o ensino médio. Mas como dizia Noel Rosa, ninguém aprende samba no colégio. Mas, se não podia aprender a vida no colégio, ao menos aprendi o truco. Os anos de cursinho. A obsessão pela engenharia mecânica. Devia estar enfeitiçado. Os motores, os desenhos, os tempos de Ayrton Senna. Quando passei em uma tão sonhada faculdade pública em engenharia, fui aprovado em Jornalismo em outra. Por maiores as lembranças de Ayrton, aquele universo não fazia mais sentido. As palavras já haviam me tomado para si. A poesia corria em meu corpo como um outro sangue, um sangue que precisava vazar ao papel.

Não há qualquer vida sem amor. Independente se ame ou não as flores e as pedras que surgem pelo caminho, há de existir o amor. Amei. E por falar em amor... Amei e amei o amor demais. Ou melhor, amei a minha procura pelo amor demais. Amores possíveis, amores impossíveis. A mulher como uma lua que espalha encanto e sofrimento. Amores confessáveis, amores inconfessáveis. Amores guardados, amores descobertos. Amar com flores e palavras. Amar sem saber o que será o amanhã. Amar e levar consigo as coisas do ontem. Amar como verbo imperativo. E quando o sonho da mulher amada se concretizou nas asas de um anjo lilás, eis que o mundo poderia soar as trombetas do apocalipse. Havia encontrado o milagre, a realização, o ápice. Ao beijo da mulher amada, nasci, amei, voei. Como uma fênix, toda a poesia que caminhava em mim se incendeia no mais alto dos céus e nasce outra vez. Amei. Renasci.

Contra tudo e contra todos, eu havia provado que o amor existe para além dos livros. Hoje, amo e amo demais e ainda faço da vida, depois de tantas desilusões, um sonho a ser sonhado. Amo. E não me importo se demais. Caminho pela vida transformada em sentimentos. E não importa se certo ou se errado, apenas amo. Sou mais um aprendiz desses tantos que amam e amaram a vida em si, por inteiro. Eis o ponto, amar por inteiro.

Vou caminhando e o amor e as palavras caminham em mim. Tenho a missão de transformar a vida em palavras. Palavras. Os sentimentos que passeiam dentro do meu corpo e dentro dos olhos das luas. A vida real e a vida fictícia de mãos dadas caminham dentro de mim. E ao contrário do que falam alguns, ao contrário de toda ciência e de todo ceticismo, continuo recebendo visitas da inspiração. Mas não me cabe neste espaço, falar ou testemunhar a inspiração. Deixo esse tema para outros papéis. Vida, sentimentos, papéis. Palavras guardadas em gavetas. E ao contrário do que se possa imaginar, as minhas gavetas não têm chaves. Quem quiser andar por meus caminhos de dentro, leia-me.

Os pincéis num canto, os quadros como as únicas testemunhas. O violão num canto, com a corda mi partida. E ao contrário de Adoniran Barbosa, não fiz da corda mi uma aliança para a bem amada. E mesmo que as tivesse ali, inteiras no braço do violão, meus dedos buscavam-nas desafinados. As palavras num canto de mim, como se guardassem uma vida que não sabe se passado, presente ou futuro. Eu, num canto, e a vida repleta de sentimentos no centro do palco. Eu, mais um desses tantos personagens que a vida insiste em alimentar de sonhos. Eu, mais um desses tantos personagens que insiste em se alimentar dos sonhos da vida.

Hoje. Um quê de inspiração, algumas folhas de papel em branco, uma caneta, um pouco de Chico Buarque, alguns olhos, uma paisagem com gosto de saudade, mas uma saudade viva, e a vida vai se mostrando pouco a pouco em linhas e versos. Linhas e versos dos caminhos de dentro. De dentro de mim. Pouco a pouco, palavra a palavra, vou despindo a vida, mesmo que vez ou outra, minha boca sinta o gosto estranho da ilusão. Um gosto estranho, porém necessário para os que sonham e sonham demais.

Mais de vinte e seis anos depois, passo buscando sentir o cheiro do perfume das rosas de Cartola, aquelas que ele fingia não escutar. Mais de vinte e seis anos depois, passo pedindo a benção e tomando os uísques poéticos que Vinícius de Moraes deixou pelo caminho. Mais de vinte e seis anos depois, passo naquela eterna tarde que se despede do sol e busca a lua como bem amada. Mais de vinte e seis anos depois, passo pela vida que continua a passar e a se mostrar aos poucos. A vida que se mostra a poucos passos adiante. Para além, só o sonho. Para trás, o nada e a saudade. Para agora, o encontro desses dois mundos no caminho de dentro. Nasço.


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