Daniel Campos

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Cartas e cigarros

Deixou as cartas sobre a mesa e saiu à procura de um cigarro. Um cigarro de pirilume. Um cigarro de lua. Um cigarro de ópio. Um cigarro de si. Ela saiu pelas ruas esfumaçadas e encontrou, em cada esquina, uma ilusão mascarada e um futuro com a cara mais amarrada. Saiu atrás de um cigarro. Procurou nas bocas dos bêbados, dos porteiros, dos taxistas, das prostitutas, dos cafetões, dos garçons, dos policiais, dos violeiros, dos cozinheiros, dos pedintes e dos ouvintes daquela música que ela nunca escutou, mas que alguém havia feito para ela.

Ela tinha fumaça nos olhos e não conseguia enxergar muito além de alguns palmos. Ela tinha fumaça nas mãos e uma fumaça que embaçava os olhos das cartomantes. Ela tinha fumaça nos passos - andava surgia andava sumia no mesmo lugar. E ela fumou a noite. E ela fumou a lua. E ela fumou os guetos. E ela fumou as luzes dos palacetes. E ela fumou na calçada da igreja e na porta de um bordel. Ela não tinha mais vida, tinha fumaça. E assim não se sabia. E assim se sufocava. E assim se esvaia. E assim gritava amava e chorava. E assim subia e caia.

Ela tinha um que de proibido, uma advertência pública de perigo. Crianças fugiam dela, mas desejavam-na. Senhoras da moral e dos bons costumes apedrejavam-na, mas a invejavam. Homens se diziam independentes, mas eram tão carentes dela. E ela, como se feita de nicotina, viciava. Quantos no mundo queriam tragá-la e quantos mundos ela tragava por dia? Uma pergunta difícil de responder.

No começo, fumava por curiosidade. Depois, por status. Depois, por prazer. Depois, por não se entender. Depois, por doer. Depois, porque não tinha com quem falar. Depois, por necessidade. Necessidade de se tragar. E ela causava infartos, acidentes cardiovasculares, falta de ar e manchas de fuligem... ou seria de batom? Ela era barata, como um cigarro, mas custava caro. Custava a juventude dos homens e as horas de sono das mulheres. Homens se perdiam e mulheres se enlouqueciam na ilusão de sua nicotina.

A noite caia de uma vez e ela, que havia apostado parar de fumar nas cartas, perdia, momentaneamente, o jogo. De repente, deixou as cartas sobre a mesa e pediu, para a rainha da sorte ou para o valete do azar, um tempo para se acalmar. O tempo de um cigarro.


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