Daniel Campos

Prosas

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Encontrados 3193 textos. Exibindo página 204 de 320.

12/04/2011 - Viveiro da tristeza

Pare! Pare de pensar, de ler, de jogar, de cantar, de querer e de tudo o mais que faça ou possa vir a fazer neste e nos próximos instantes e atente-se para a tristeza da mulher que floresce tão linda e desesperada como flor no inverno. Seu olhar luminoso e triste, como uma gema de opala, nasce entre o espanto e o encanto com uma desenvoltura capaz de acabar de pronto com a pequenez do cotidiano. Diante dos olhos tristes da mulher que não existe além da própria insensatez a cidade se alvoroça e tudo se coça e se roça. ...
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11/04/2011 - O pintor de poemas

Quem é aquele homem que pega uma lata de tinta e um pincel e sai escrevendo versos, estrofes, poemas inteiros pelas ruas, pelas calçadas, pelos muros, pelas árvores, pelas janelas da cidade. Será de carne? Será que tem nome? Será que está sóbrio? São liras de poetas portugueses, chilenos, ingleses, russos, franceses se misturando naquela tinta grossa que ora é vermelha ora é azul ora é amarela aquarela. Coloca rimas perfeitas ao norte e rimas livres ao sul como se quisesse dizer alguma coisa nas entrelinhas... ...
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10/04/2011 - De tanto olhar...

Eu lhe olho distraída, parada e pensando na vida tão quieta e doída como uma ave ferida no seu direito de voar. Eu lhe olho concentrada, analisando por onde tem ido sua estrada e lhe sinto atormentada. Você sempre calada, de portas fechadas e almas guardadas a sete chaves, com setecentos segredos. Eu olho medos obtusos exalando de seu colo e de lhe olhar, feito um intruso, sorrio e choro. Quero ajudar, mas sem saber por onde começar, eu nada faço senão lhe olhar, lhe olhar, lhe olhar...

E lhe olhando me embriago como se passasse a noite num bar. E lhe olhando lhe afago como se tivesse em meus braços. E é lhe olhando que me pego dançando num salão, pareando meus passos em seus passos. Com meus olhos eu lhe cubro e lhe dispo, eu lhe alço e lhe derrubo, lhe pesco e lhe flerto. De olhar em olhar vou lhe esculpindo em minha mente, vou lhe tendo às vezes inocente, às vezes indecente, vou lhe roubando os pedaços e juntando aos meus os seus traços... ...
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09/04/2011 - Coisas do frio

O frio chegou antes. Chegou lá pelos meados de março e sem vergonha espalhou-se por abril. Um frio duradouro que chega a doer os ossos reumáticos. Um frio indiscreto, que causa. Um frio poético, que atiça. Um frio que cala dois corpos em um só corpo. Adoro esse frio inesperado. Um frio chuvoso, de neblinas e lãs. Um frio que corta como uma navalha nas mãos de um barbeiro. Gosto de sentir esse frio e de vê-lo se aboletar pelas coisas e pessoas que estão ao redor.

É como se o tempo tivesse enjulhecido. Sinto novamente as sensações e vibrações dos meses de julho que ficaram pelo caminho. Noites de festas juninas. Noites de fogueiras. Eu cortava a noite, indo da casa dos meus pais à casa do meu avô, com uma manta nas costas. Tempo em que a terra nina as sementes, e elas adormecem na espera por dias de calor. Tempo de chás e sopas, de livros e músicas capazes de agasalhar a alma, como um bom disco de Jobim....
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08/04/2011 - Eu quero um tempo

Eu quero um tempo, um tempo feito só pra mim. Um tempo à parte de relógios e calendários. Um tempo sem começo nem fim, bem farto e com cheiro de alecrim. Um tempo sem direito a adeus. Um tempo de resposta. Um tempo feito assim, no tempo de Deus. Um tempo de romance, de nuance, de entrance. Um tempo para quem gosta de temporizar. Um tempo sem data de validade e sem direito à saudade. Um tempo que não devore segundos, minutos e dias da minha vida, tampouco me faça caminhar rumo à despedida.
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07/04/2011 - Mulher das adegas

Seu caminhar, mulher, cândido ao vento, vai bem com vinhos brancos leves. Anda, compondo-te em movimentos, enquanto a bebo num trago de Suavignon. Sua leveza é digna de um Pinot Noir. Diante de ti, ò mulher das adegas, curvar-te-á o meu paladar. Como é belo admirar suas expressões refletindo translúcidas ao longo de uma taça de Chardonnay. Bestifico-me de como seus olhos, frutados e frescos, me enchem de vontade e medo ao mesmo tempo.

Suas palavras, de uma adstringência característica, acompanham perfeitamente vinhos franceses das regiões da Borgonha e de Bordeaux. Já sua carne, incluindo o desejo que dela aflora, faz combinações surpreendentes do Malbec ao Cabernet, passando pelo Shiraz. E o que dizer de sua ironia, fina e ácida na medida certa como uma garrafa de Zinfadel? Vida esparramada em videiras, bebida guardada em cristaleiras. ...
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06/04/2011 - Considerações

O que se ganha se perde nesta vida. O que se prende um dia se solta. O que se aprende um dia se esquece. O que se peca logo mais se arrepende. O que se acha volta e meia não se encontra. Todo riso se transforma em lágrima e todo pranto um dia volta a sorrir.

O que se une com o tempo se separa. O que se acredita um dia se duvida. O que deus deseja o céu troveja. O que se ilumina mais pra frente volta a escurecer. O que se espera mais cedo ou mais tarde acontece. Toda semente pra vingar primeiro é preciso morrer. ...
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05/04/2011 - Enlace

Quando ele chega ao fim do dia trazendo consigo a saudade, dores e um cesto cheio de caipirices ela se avia e agradece rezando baixinho uma ave maria. Ele tem o corpo cansado, o rosto suado e um monte de coisas para contar. Enquanto ele vai para o chuveiro ela lava sua marmita, passa um café e tira um bolo do forno e pensa coisas de mulher. Ela põe sua toalha na janela e ele canta como que espantando seus males, como que voltando para seus lugares, como que velejando por mares sem fim.
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04/04/2011 - Entre o silêncio e a escuridão

A mulher amada é tão detalhada e silenciosa quanto à noite que cobre o seu corpo. Estelar, como as revistas de ficção científica, e divina como os livros sagrados que falam em céu, a mulher amada é noite profunda, funda escuridão. É a cantiga da estrela cadente e o desejo de tê-la só e somente só o quanto mais perto e a todo e qualquer instante. E o cometa infante, apaixonado, escorrega sobre a barriga dessa mulher que tanto se quer entre o sereno e a neblina.

Mulher que sacia a fome, a sede, a angústia de viver. Mulher que cala a solidão e fala em espaço, em universo, em galáxia com a naturalidade das crianças que sonham em embarcar em foguetes. Mulher que é materialização da saudade que berra entre o astronauta e a Terra. Mulher que é santa e vaga, em feitio de vagalumes. Mulher que míngua e se renova como a lua. Mulher luminosa e grandiosa como a noite que invade a cidade com suas carruagens puxando sedutoras paisagens. ...
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03/04/2011 - Passos de alfazema

Em algum lugar da minha memória genética, real, hipotética, carnal, física, imaterial, afetiva ou proibitiva, a cidade me amanheceu cheirando à alfazema. Entre o dilema dos romances, o desbotado das fotos e o desenrolar dos filmes, das matas às ruas baratas a cidade se perfumou. E a fragrância durou o tempo, breve e necessário, de uma mulher passar pelo perímetro dos meus olhos. Passou como quem não quer nada e quer tudo ao mesmo tempo. Passou como passa o vento, dobrando árvores, arrastando emoções, ouvindo apelos, embaralhando letras e ouriçando os cabelos. Passou deixando tortas as sarjetas que se jogaram aos seus tornozelos. ...
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