Daniel Campos

Prosas

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Encontrados 3193 textos. Exibindo página 206 de 320.

23/03/2011 - Pra longe, vamos

Vamos pra longe, pra longe dos problemas. Dar adeus ao que o tempo esconde e se jogar na estrada. Vamos pra longe, pra longe dos dilemas. Colocar o sentimento na bagagem, comprar passagem para a mais apaixonada das luas. Vamos pra longe, virar à esquerda da terceira estrofe do poema. Vamos pra longe de todas as ruas que conhecemos. Vamos tomar rumo a partir do instante em que nos perdemos um no outro e nos envolvemos outro no um. Vamos pra longe, pra todos os lugares e pra lugar algum.

Vamos pra longe, pra longe dos velhos lençóis. Desatar os nós de marinheiros que os caminhos e descaminhos nos deram. Vamos pra longe, pra longe de cada um de nós. Inventar outro cotidiano, virar o ano, mudar o plano, entrar pelo cano, trocar o certo pelo engano. Vamos pra longe de um tempo a sós. Correr cidades, capturar momentos, redimensionar saudades. Vamos pra longe, pra longe no silêncio de um monge. Partir em segredo, sem medo de cair ou sorrir. ...
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22/03/2011 - A morte, o que será?

Se deus é sinônimo de vida o que é a morte? A antítese divina? E quem é a antítese de deus? Lúcifer? Acho que não. Aquela figura lendária que vaga entre os moribundos com capuz negro e foice, ceifando a vida dos humanos está atrelada a deus ou ao demônio? Por que o criador iria matar sua criação? Não faz sentido. Por que o diabo iria matar sua fonte de pecado, se o inferno é vivido na crosta terrestre? Também não faz sentido. Será a morte o elo perdido entre deus e o diabo?

Quem ou o que é a morte afinal? Se a morte não é deus pode-se dizer que é tão antiga quanto ele, ou até mesmo que ela o precede na linha do tempo. E, sendo assim, deus e morte duas criaturas antagônicas, o todo-poderoso pode morrer. Difícil imaginar isso, mas há um duelo incessante entre a vida e a morte, entre o começo e o fim, entre a luz e a sombra. E perguntas não se calam: deus venceu a morte ao ressuscitar seu filho? O diabo compra almas para continuar vivo? ...
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21/03/2011 - Em você

Os caminhos que me levam são as linhas da sua mão. Minha casa é o seu corpo, onde me deito depois de correr sua pele de cima abaixo. Pelo seu avesso, escrevi meus segredos. Vez ou outra, eu ignoro o medo, entro num barco de papel e desço o rio escorregadio dos seus olhos amorenados. Corto o sertão dos seus pensamentos e choro a distância que me separa das suas lembranças mais desbotadas. Abro os braços fingindo ter asas e vôo no rastro da lua cheia impulsionado pelo sopro doce e quente da sua boca molhada. ...
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20/03/2011 - Copos e criaturas

Vasculhando as minhas memórias não encontro referência maior de pluralidade do que os copos que se esparramavam pelas mesas de almoços e jantares na casa de minha avó Adélia. Copos de diferentes cores, texturas, tamanhos, formatos e procedências. Difícil encontrar dois copos iguais nas prateleiras daquela mulher que foi quebrando e juntando copos ao longo de mais de cinqüenta anos de casamento. Copos comprados, ganhados, achados. Copos gorduchos e esbeltos, copos lisos ou desenhados, copos transparentes ou estampados com temas florais. Copos originalmente copos de requeijão, de massa de tomate, de milho, de azeitona, de geléia... ...
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19/03/2011 - Ouvindo-se

Ouça. Ouça o que seus ouvidos não estão acostumados a ouvir. Ouça o seu corpo. Ouça as suas células se reproduzindo, seus pulmões se enchendo de ar, seus neurônios dando choque. Ouça seus pelos se ouriçando, seus beijos passados, seus pensamentos guardados. Ouça a sinfonia indiscreta e, ao mesmo tempo, secreta que é você. Ouça o silêncio em cada um de seus gritos. Ouça os movimentos ósseos e musculares. Ouça sua alma querendo sair do corpo. Ouça as corredeiras sanguíneas e os convites das linhas do destino que correm em suas mãos. Ouça suas unhas e cabelos crescendo num movimento quase que constante. Ouça sua anatomia transcendendo dos campos da física e da química para os terrenos da poesia. ...
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18/03/2011 - Capítulo 65

A cena de dona Valentina e Malena de mãos dadas no sofá do hospital é forte por si só. Embora possa assustar por sua intensidade, inspira segurança e conforto. Elas mantêm os olhos fechados e as mãos entrelaçadas. Dali mesmo as duas enviam fluidos para a sala de parto. Sebastian toma um café na cantina da maternidade enquanto procura se concentrar e rezar. Ao contrário de outros tempos não foca sua reza em Miguel.

Eleva preces para espíritos iluminados. Busca contato com Jhaver e outros seres de luz que conheceu. Mas a inquietude que o perturba nas últimas semanas quebra seus pensamentos. Micaela está na sala de parto há mais de duas horas. Desde o início das contrações ao rompimento da bolsa nada fugiu ao normal. Todos estavam em casa, afinal, era fim de madrugada. A maleta com as coisas necessárias para o hospital já estava devidamente pronta. ...
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18/03/2011 - O tempo da ingratidão

Ah! Ingratidão toma tudo que tudo é teu. Não adianta mais disfarçar ou remediar ou parafrasear, o que tinha de sofrer já sofreu. O coração, desvalido, da pobre criatura que se entregou ao amor desafinou. Os sonhos, tão sonhados e tão desejados, apodrecem dia após dia numa sucessão de agonia. A alma marcada pelos seus chicotes, ò ingratidão, segue sua via dolorosa chorando sua própria ilusão. Como pode? Não devia...

Ah! Não faz assim, ingratidão, com quem lhe deu da mão aos versos de sua maior canção. Como pode não acreditar em quem lhe acredita, como pode duvidar de quem lhe colocou acima de qualquer dúvida, como pode não compreender um sentimento tão compreensível. Como pode ser ingrata, ò criatura, a ponto de afirmar que tudo não passou de uma grande errata. ...
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17/03/2011 - Araticum

Depois da pinha, da fruta-do-conde, da atemóia, fui apresentado ao araticum, também conhecido como ariticum. O fruto estava ali me esperando já há alguns anos em uma banca de camelô. Seu tamanho de quilo e sua casca verde-amarronzada sempre me instigou. Depois de muito relutar, decidi levar para casa mais essa iguaria do cerrado, com sabor tão típico quão o pequi e o caja. De pronto, o cheiro infestou a casa. Dormi levado pelo perfume do ariticum.

Dormi sem saber que o araticum é uma árvore do tamanho de uma laranjeira e cuja folha lembra a do limoeiro. E mesmo assim, sabendo quase nada, sonhei que estava no meio de um imenso pomar dessa árvore. Eu corria de pé em pé, apalpava os frutos e entregava minha boca ao sabor de cerrado daquelas sementes carnudas. De repende, estava caminhando a passos largos por uma polpa macia e arenosa, no doce-azedo tipicamente silvestre de um araticum gigante. ...
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16/03/2011 - Um novo pacto

Precisamos de um novo pacto republicano onde o tempo deixe de ser tirano, senhor e soberano. Precisamos de um pacto de sangue entre o sonho e a realidade, pra que quando acordemos não percamos a vontade de viver. Um pacto capaz de selar um novo começo mesmo pra quem ainda não chegou ao final. Um pacto de sorte, de sucesso, de riqueza. Um pacto que nos leve a uma nova ordem mundial e, por que não, sentimental.

Precisamos selar esse pacto com sangue, com beijo, com assinaturas. Precisamos de um pacto cigano que não nos dê paradeiro e que embaralhe as linhas das nossas mãos. Um pacto astrológico, passível de mexer com astros e estrelas de hollywood. Um pacto mágico, nostálgico, nevrálgico. Um pacto de natureza eterna, possível de ser selado num aperto de mãos ou num encontro de pernas. Um pacto firmado em cartórios ou tabernas. ...
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15/03/2011 - Um ano sem herói

Há exatos doze meses, entre a dor e o medo, descobri que heróis também morrem. Há um ano perdi aquele que povoou minha vida com a magia mais pura que se tem notícia – a imaginação. Há um ano perdi aquele que me fez acreditar que um homem pode ter superpoderes como voar, enfrentar exércitos, vencer o tempo. Há um ano perdi aquele que fazia o impossível virar possível num estalar de dedos. Há um ano perdi o herói de fé, de coragem, de força de vontade, de superação... Há um ano o herói, meio bruxo meio guerreiro, depois de 77 anos de luta e fantasia, fez-se adeus. ...
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