Daniel Campos

Prosas

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08/10/2008 - Estradeiro

Tem dias em que uma vontade de correr mundo nos invade. Vontade de pegar um trem, um carro, um avião, um ônibus, um barco, uma bicicleta e sair pelos rumos de uma bússola quebrada e de um mapa-astral. Ai meu Deus que bom, quero me guiar pela conjunção de Marte com Plutão e me alimentar de lua cheia que congestiona a estrada. Quero escalar as montanhas do desconhecido, pular o trópico de Capricórnio e me equilibrar num monociclo pela linha do Equador.

Quero revirar os fusos horários pelo avesso e mostrar ao mundo que o tempo não tem hora para acontecer. Quero fazer uma rota marejando pelos olhos de um senhor chamado destino, que ora é velho ora é menino. Menino dos meus dias. Menina da minha poesia. Quero sentir o sabor da poeira estradeira em minha língua e a chuva me transformando em enxurrada. Ah! Quero amar e esquiar pelos cabelos da amada e me enterrar vivo em sua avalanche. ...
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29/11/2009 - Estrelas de bytes

Não pense duas vezes: desligue o computador e vá se encontrar com o céu. Não, não digo que é chegada à hora de morrer. O que eu quero é que você vá se comunicar com esse teto ora celeste ora negro ora cinza que a todos cobre. Independentemente do que vá encontrar lá fora, vá. Como aqueles móbiles que enfeitam berços de bebês, brinque com sóis e asteróides dependurados e em constante movimento. Quero que os mire com atenção, observando seus passos, pensamentos e olhares.

Escute o que cometas, asteróides, marcianos e anjos têm a dizer. Mas atenção: a informação não vem pronta como na internet. É preciso que você a construa. Inspire, expire, respire. Deixe braços e pernas à vontade. Não é necessário lunetas, telescópios ou qualquer tipo de entorpecente para realizar essa tarefa. O céu fala. Mesmo sem trovões, o céu fala. Tente ouvir o choro contido no parto de uma estrela. Tente entender a angústia de um buraco negro. Tente espionar as conversas dos astronautas. ...
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27/03/2011 - Estrelas pirilampos

Menina preste atenção no que as estrelas do cruzeiro querem nos dizer. Lá de cima elas sabem tanto do nosso caminho quanto a velha que lê nossa sorte nas cinzas do cinzeiro. As estrelas, tanto as mais sérias quanto as mais fagueiras, estão nos mandando atravessar o sertão rumo ao encontro de um novo tempo ou ao reencontro de um velho sentimento. Somos as sementes de uma nova plantação. Já recebemos o sinal. As estrelas nos mandaram um postal. Vamos...

Se a estrela não mente, vamos, enquanto semente, deitar na terra onde tudo dá e esperar a chuva nos germinar. Vamos plantar nosso coração no chão e rezar pra não dar erva daninha, seca ou geada durante a nossa jornada pelas terras de Santa Cruz. Que possamos madurar, lado a lado, à luz das estrelas de luz. Que a morte não envolva nossos olhos matizados em seu capuz. Ave-Maria, madre luz. ...
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29/12/2013 - Eu ainda...

Eu ainda estou aqui, onde você deixou. Eu ainda vivo, conforme te prometi. Eu ainda sigo a estrela dos seus olhos, que vaga pelo meu céu como vagalume, surgindo e sumindo. Eu ainda estou disposto a levar tudo isso adiante, bem adiante. Eu ainda batalho. Eu ainda luto. Eu ainda resisto. Eu ainda consigo sorrir porque não há motivo algum para negar a felicidade. Eu ainda pulso como um enorme coração com braços, pernas, boca. Eu ainda acredito e, devo dizer, que cada vez mais. Eu ainda busco, mas já tenho em mim todas as respostas. Eu ainda quero tudo o que foi imaginado. Eu ainda deito e me levanto com um objetivo maior. Eu ainda sou forte o suficiente para suportar o que o tempo me oferece. Eu ainda me inspiro e sei que vale à pena continuar bebendo desta fonte que me faz melhor. Eu ainda escrevo o que sou e o que sinto. Eu ainda estou de pé e nada nem ninguém me tomba. Eu ainda valho alguns sonhos. Eu ainda sou todo este sentimento. Eu ainda sou o poeta que quer se casar com sua poesia. Eu ainda sou amor e amor demais, e pretendo continuar sendo assim ao longo de toda minha eternidade.


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13/07/2011 - Eu amo a filha de...

Eu amo a filha da deusa dos mistérios, dona de muitos búzios e deveras anos. Eu amo a filha daquela que é, ao mesmo tempo, o princípio, o meio e o fim. Eu amo a filha daquela que é formada pelo encontro da água com a terra. Eu amo a filha daquela que se farta de uvas de todas as espécies. Eu amo a filha daquela que rege o nascimento, a trajetória e o desencarne de tudo o que é vivo. Eu amo a filha daquela que é a própria história do homem sobre a terra. Eu amo a filha da água parada, da água da vida e da morte. Eu amo a filha daquela que traz em suas mãos um ibiri, feito com palitos de dendezeiro. ...
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Eu amo che guevara

Vestia vermelho. Mas não era um vestido vermelho de noite, tampouco uma lingerie vermelha de uma hora especial, muito menos um blazer para o trabalho. Era uma camiseta surrada contendo alguns dizeres que, na verdade, era um grito de guerra. E mais, era uma camiseta de hora qualquer. E a mesma camiseta usada por ela, vestia dúzias de homens que levavam em seu rosto a barba ainda por fazer. Para completar a brutalidade da veste, como uma flor que, mesmo sem querer desabrocha entre as pedras, vestia calça jeans e tênis. Nada combinava, nada rimava, nada se casava no visual daquela mulher que queria ser pedra e nascera flor. ...
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07/09/2015 - Eu árvore

Há muito tempo eu fui nasci, cresci e morri árvore. Eu tive raízes que ainda sinto me levando para o fundo da terra em busca de águas e minérios. Era formado por galhos, por tantos galhos, que me fazem achar dois braços pouco para tudo o que eu preciso abraçar. Não é à toa que de vez em quando um pássaro pousa em mim. Já fui desejado. Quiseram a minha sombra, os meus frutos maduros, as minhas sementes, o meu lenho. Quantos quiseram me derrubar. Hoje choro com minhas irmãs árvores sendo lambidas pelo fogo ou sangradas pelos machados. Quantas vezes eu me corto e meu sangue é seiva. Não estranho de me procurarem para fazer seus ninhos. Por todo o meu ser flui a energia das árvores, dos espíritos das árvores. Muitos riem e querem me dar camisas de força por me encontrar conversando com jacarandás, mangueiras, amoreiras, ipês, jabuticabeiras, jequitibás... Tolos! Não percebem que as árvores dançam, falam, cantam, mudam de lugar sob os narizes incrédulos. O mundo é das árvores que nos dão de comer, de beber, de vestir, de escrever... Por conta desse meu passado sou tão apegado com as folhas. Enquanto muitos só leem páginas de jornais, revistas ou livros eu sigo lendo as folhas das árvores e assim releio a minha história. Hoje eu ainda conto as prosas, os romances, os versos que o vento, no passado, deixou em minha cabeça, ou melhor, em minha copa.


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09/06/2013 - Eu coloco minhas guias

Eu coloco minhas guias como o cavaleiro coloca sua armadura. Eu coloco minhas guias como se eu me vestisse de fé. Eu coloco minhas guias e me santifico. Eu coloco as minhas guias e me renovo. Eu coloco as minhas guias e imediatamente sinto o axé correndo em mim. Eu coloco as minhas guias e tudo se transforma. Eu coloco a minha guia e espadas e escudos me guardam. Eu coloco as minhas guias e sou pego pelas mãos por meu pai, sou carregado no colo por minha mãe, sou acompanhado por meus avós.
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Eu e a roda-viva

Com todo o respeito e humildade necessários ouso professar: tem dias em que me sinto, tal Chico Buarque, "como quem partiu ou morreu". Dia em que me arrependo de amanhecer. Todos podem sorrir ao meu redor, mas acho isso tudo "um porre". Na cama, em casa, na rua, nenhum lugar me parece bom, uma angústia interior me percorre numa ânsia que me sufoca. Uma situação de incômodo me encurrala, não sei se o mundo me incomoda ou se eu incomodo o mundo.

As companhias pessoais ou materiais (os livros, os discos, os jornais,...) não me satisfazem. É uma sensação estranha de um desespero remoído, uma agonia que me obriga a fugir de tudo e de todos. Então, sem mais razões, encontro-me num canto, distante e solitário, onde eu posso me encontrar comigo mesmo, sem influências externas....
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23/12/2011 - Eu e eu mesmo

Eu cantei passarinho. Eu li um romance. Eu vivi um livro. Eu fiz oferenda ao meu orixá. Eu chorei no cinema. Eu entreguei tudo ao tempo. Eu comi em francês. Eu chamei um uísque. Eu peguei uma história. Eu derrubei um medo. Eu plantei um poema. Eu revelei um segredo. Eu quebrei um espelho. Eu escondi um disco. Eu vi o trem. Eu me embriaguei de saudade. Eu corri de mim. Eu corri pra você.

Eu passei ao lado. Eu descuidei do fogo. Eu escrevi na parede. Eu encontrei um destino. Eu enterrei dois sonhos. Eu confessei três pecados. Eu mordi uma maçã. Eu me envolvi com uma previsão. Eu solucei a ausência. Eu engoli as letras. Eu despistei o juízo. Eu estourei um champanhe. Eu perdi o avião. Eu fiquei nu no terraço. Eu dormi em número par. Eu rasguei um contrato. Eu menti para mim. Eu me mudei para você. ...
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