Daniel Campos

Prosas

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Encontrados 3193 textos. Exibindo página 302 de 320.

É de batalhas que se vive a vida

Nem mesmo o sol conseguiu se recompor a tempo para descortinar aquele dois de outubro de 2006. O dia, por si só, amanheceu de ressaca. E não era de uísque. O céu ganhou nuvens pesadas e passou como um mar escuro, sem estrelas, sem cometas, sem sóis nem luas. E o sal desse mar escorreu por muitos olhos. Olhos negros. Olhos verdes. Olhos azuis. Independente da cor, o sentimento era o mesmo naqueles olhos de tanta luta, de tanto esforço, de tanta dedicação.

Naquela segunda-feira por mais que se falasse, que se afirmasse, que se jurasse, nada parecia concreto. Para onde foi a realidade? Para onde foi a nossa ilusão? Para onde foi a vitória? Naquela segunda-feira, o céu nublado ofuscou a armadura de Nike, a deusa grega da vitória. Naquela segunda-feira, as vidas-secas de Sinhá-Vitória ficaram ainda mais secas. Naquela segunda-feira, mesmo com a presença da primavera, nenhuma vitória-régia conseguiu se abrir em flor....
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É preciso cuidado

É preciso ter cuidado com a mulher que não diz não. É preciso ter cuidado com a mulher que insiste no amanhã. É preciso ter cuidado com a mulher que provoca ressaca mesmo longe do mar. É preciso ter cuidado com a mulher que lhe rouba o sono. É preciso ter cuidado com a mulher que promete renunciar ao cotidiano, aos limites. É preciso ter cuidado com a mulher que não precisa de motivos. É preciso ter cuidado com a mulher que diz não lhe saber. É preciso ter cuidado com a mulher que diz ficar sem graça. É preciso ter cuidado com a mulher que se auto-proclama ciumenta. ...
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E que tudo mais

"Por que não se cala"?! Era uma vez um rei da Espanha que mandou um presidente da Venezuela calar a boca em uma reunião e essa bronca virou hit mundial. O cale a boca real virou toque de celular, vídeo de internet, gíria da garotada. Atenção: não estou defendendo o showman Hugo Chavez e sim a tese de que o desrespeito é a grande sensação da sociedade atual. Em todos os hemisférios, em todos os pólos, seja nos palácios ou nos guetos, seja na casa do vizinho ou no fundo do nosso quintal, o desrespeito está presente....
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E tudo era saudade

Uma cortina de fumaça. Contrariando dermatologistas, o chuveiro no modo inverno no mais infernal dos verões. Gostava daquela fumaça. Talvez se sentisse mais protegida, talvez lembrasse de efeitos especiais, talvez se sentisse acariciada por aquelas moléculas de hidrogênio e oxigênio em pleno estado de vapor. Independente dos talvez, já havia se separado das peças de lingerie. Era pele e vapor. Nenhuma barreira. Nenhum impedimento. O banheiro pequeno não permitia que ela se perdesse. O chuveiro escorria como uma cascata de apartamento. Não se preocupava com o desperdício de água, com a conta da energia elétrica, aquele era um momento só dela, nada que o gerente do banco ou uma dezena de ambientalistas pudessem estragar. ...
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Ela fuma jonhn player special

As pedras do isqueiro se esfregam como dois amantes e a chama, que não é vermelha, incendeia um cigarro manchado por um batom pouco. Batom que também não é vermelho. Cigarro aceso, as mãos de unhas afiadas e dedos longos levam e tiram o cigarro dos lábios escorregadios. Lábios tão claros que quase somem na pele daquela mulher. O cigarro queima. Ela sai. Caminha. O cigarro arde. E são tantos violamentos, pedidos de perdão, esquecimentos, declarações e uma lista de outros atrevimentos que ficam submersos na fumaça daquele cigarro. ...
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Comentários (2)

Eleição caipira

- Zé, você já tem candidato?

- Candidato para quê? Pro torneio de catira lá de Porteira Alta?

- Não... acorda Zé, estou falando das eleições do ano que vem...

- Eleição para capitão do time de futebol lá do...?

- Pra prefeito Zé !!! Eleição pra prefeito...

- Ah! Mas cê já têm candidato Neco? Ainda tá tão longe...

- Candidato, candidato, eu não sei... Mas tem aqueles que são sempre candidato. Você sabe né, tem gente aí que não é outra coisa senão candidato. Profissão: candidato. Tem aqueles que falam que são e depois não são e tem aqueles que não falam, mas são. Você entende o que eu quero dizer, né Zé? ...
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Enfim, a guerra

Somos obrigados a viver a guerra. Amar, dormir, beber a guerra. Mais uma vez, somos reféns do poder. As nossas bocas são condenadas ao deguste da guerra. Mas que guerra? A guerra que nos querem mostrar. A guerra que querem pública. A guerra que nos arranca as asas da liberdade. E é tanta guerra, que até as minhas linhas se entregaram a ela. Juro leitor, eu resisti até onde pude, mas fui sufocado. Um tipo de censura que para calar, obriga a falar. Falar de guerra.

EUA x Terrorismo. EUA e Cia x Afeganistão. Bush x quem não é Bush. Em poucos minutos, do céu ao inferno. Duas torres. Torres de quem? Por que temos o costume de colocar o símbolo dos outros, um símbolo que não diz nada, em nosso peito? Lastimo pelos inocentes, mas e as tantas torres que são ruínas no Afeganistão... Torres humanas. Torres reduzidas a pó. Pó! O pó do deserto que cobre os olhos sem expectativas. Olhos que se rendem a um Deus. Deus dos miseráveis. Deus de ideologias dominantes. Condenam o fanatismo islâmico, porém em que altar se posiciona o orgulho norte-americano? ...
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Entre o passado e o presente

Pagão

Nasci João Batista Aragão. Nasci pagão em dia santo. Dia de São João. Dia de samba. Dia forte. Nasci com as benções dos santos e com as tentações do pecado. Ainda pequeno meu registro perdeu o valor. Gostava tanto do Estácio que comecei a ser chamado de Estaciozinho quando eu tinha quatro anos de idade. Mas o nome era muito grande. Vem cá Estaciozinho. Pega a cuíca Estaciozinho. Juízo, heim, Estaciozinho. Então comecei a ser Zinho. Como já havia um monte de Zinho, virei Zinho Preto. ...
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Espelho, espelho meu

A suposta guerra entre EUA e Iraque poderia ser explicada através de diversas visões, desde um confronto entre dois países com posições dispares até uma crise freudiana que assolaria George W. Bush Júnior e o incumbiria de terminar o que seu pai começou com Sadam. Então, qual é a lógica da guerra?

A guerra do Golfo, no começo da última década do século XX, deixou cicatrizes. Um Iraque destruído e um ditador fortalecido pela relação de ódio com os americanos. Embargos comerciais de um lado e bandeiras americanas queimadas nas ruas, do outro. Este conflito é como aqueles filmes que pedem continuação. Antes de aparecer na tela o célebre The End, existe a deixa para o segundo episódio. ...
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Esperança

O galo avermelhado se equilibra e, entre asas abertas e peito estufado, canta. O dia ainda tem a pele negra. Bento, um homem com marcas de sol e de pouca conversa, acorda. O relógio passeia em torno das quatro horas da madrugada. Sai com as botinas e com uma camisa rala de flanela. Sai pelo orvalho. Quebra a escuridão num cigarro aceso. Os pés e a terra fria. Os pés e o esterco. Os pés e o mesmo caminho de anos atrás.

Como de costume, o encontro. Esperança o esperava com olhos grandes. Sozinha no curral, Esperança. Uma vaca mocha, branca com manchas negras. O coxo para tantas bocas e uma só vaca. Naquele mangueiro, Bento se encontrava com o rasto de tantas outras vacas. De fato, tinha lembranças. Aquele curral que teve quase cem cabeças, hoje, só tem uma. Esperança. Dói olhar aquela esperança solitária. A dor traumática de se separar daqueles bichos. Mas veio a crise e não tinha como ser diferente. Bento não entendia de política, mas sabia que a culpa era daqueles homens engravatados. ...
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