Daniel Campos

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E tudo era saudade

Uma cortina de fumaça. Contrariando dermatologistas, o chuveiro no modo inverno no mais infernal dos verões. Gostava daquela fumaça. Talvez se sentisse mais protegida, talvez lembrasse de efeitos especiais, talvez se sentisse acariciada por aquelas moléculas de hidrogênio e oxigênio em pleno estado de vapor. Independente dos talvez, já havia se separado das peças de lingerie. Era pele e vapor. Nenhuma barreira. Nenhum impedimento. O banheiro pequeno não permitia que ela se perdesse. O chuveiro escorria como uma cascata de apartamento. Não se preocupava com o desperdício de água, com a conta da energia elétrica, aquele era um momento só dela, nada que o gerente do banco ou uma dezena de ambientalistas pudessem estragar.

Antes do banho, buscava o espelho, mas não conseguia ver sua imagem. Enxergava apenas uma sombra entre o vapor. No meio daquela nuvem era como se não tivesse identidade. Ali, grifes não importavam. Os cabelos, aos poucos, agarravam-se as costas. Sabonetes especiais. Sabonetes vegetais. Sabonetes esfoliantes. A textura do capim cidreira com a beleza da semente de maracujá com o suco da andiroba com essência de maçã verde colhida no outono do norte italiano por campônios que cantavam tarantela.

Tudo isso aliado a três xampus diferentes, além do condicionador, que mandava fazer em uma farmácia de manipulação conforme quisera seu dermatologista. Os perfumes químicos se misturando e seu corpo se tornando desejado por alquimistas. E se uma dezena deles invadisse o banheiro? Isso parecia não preocupar aquela mulher que se desfragmentava a cada nova gota. A cada nova gota, uma nova realidade. As mãos nas voltas da torneira. Os pés nas voltas do ralo. A cintura nas voltas de uma música que ela insistia em não cantar. Não cantava, não declamava, não dançava, apenas se entregava àquela água. Água doce. Água que de tão doce chegava a ter uma tonalidade rosada, como a dos botos que infestavam aquele banheiro com seus pulos e risos. E se uma embarcação sem destino derrubasse com seu casco escuro as paredes daquele banheiro e apontasse seus arpões àquela iemanjá suburbana?

Imagina. Imagina. Imagina. A imaginação é mencionada, dimensionada e redimensionada a todo instante. As mãos deslizam pela linha que divide imaginação e realidade e calam o corpo de qualquer grito. Debaixo da temperatura líquida, a pele ganha uma coloração mais intensa. Cinqüenta minutos depois, ela cai nos braços da toalha e encosta suas costas na parede fria e escorrega, quadro a quadro, até a última camada de azulejo. As pernas dobradas. O cabelo no rosto. As mãos no rosto. As lágrimas no rosto.

E tudo era soluço. E tudo era vapor. E tudo era saudade.


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