E que tudo mais
"Por que não se cala"?! Era uma vez um rei da Espanha que mandou um presidente da Venezuela calar a boca em uma reunião e essa bronca virou hit mundial. O cale a boca real virou toque de celular, vídeo de internet, gíria da garotada. Atenção: não estou defendendo o showman Hugo Chavez e sim a tese de que o desrespeito é a grande sensação da sociedade atual. Em todos os hemisférios, em todos os pólos, seja nos palácios ou nos guetos, seja na casa do vizinho ou no fundo do nosso quintal, o desrespeito está presente.
Não sou louco de dizer que ele nasceu agora, porém digo e repito: ele está mais forte e enraizado do que nunca na sociedade. Essa geração coca-cola arrota desrespeito na cara alheia sem maiores pudores. Arrota seus fracassos, suas frustrações, suas insatisfações, sua podridão, sua ganância como que querendo espalhar sua miséria ética e moral feito um vírus ensandecido. Tornou-se lugar comum ser desrespeitoso. E isso em todos os campos, de um extremo ao outro.
A maioria prefere cultivar a infidelidade a alimentar-se de um amor verdadeiro. Aliás, a maioria nem acredita mais no amor, tampouco no verdadeiro. Nessa questão de acreditar, hoje em dia é cult ser ateu. Se bem que desde Judas, as traições ao todo-poderoso se tornaram corriqueiras. O nome de deus vem sendo usado com freqüência para um fim ilícito - enriquecimento. E não entenda esse enriquecimento como espiritual, mas de capital. Contudo, os infiéis andam esperando e cobrando e reclamando por milagres.
Faço essa comparação para dizer que não há respeito nem com elementos terrenos ou divinos. Tudo é motivo de traição, de usurpação, de exploração. Até o nosso planeta está dando sinais visíveis da falta de respeito humano. E como a Terra não é de levar desaforo para casa, vai nos despejar logo logo. E não me lembro de Noé ter levado ratos com ele naquela arca. E por falar em ratazanas, a equipe de trabalho, os nossos representantes e a própria família, uma das instituições mais sólidas desde a Grécia antiga, são locais ideais para encontrarmos manifestações obtusas de desrespeito.
Hoje, grande parte das estruturas familiares é formada por doses diferenciadas de veneno. São jararacas, são cascavéis, são urutus, são corais verdadeiras e falsas que se sentam, lado a lado, à mesa prontas pra dar o golpe. E de preferência, o golpe financeiro. "Até tu, Brutus, meu filho?" Não há o mínimo de respeito nas relações fraternas ou maternas ou juradas eternas, tudo é hipocrisia, falsidade e coisa e tal em nome de tirar algum proveito. Proveito próprio. E tudo isso porque a coletividade morreu e o egoísmo impera.
A revolução não aconteceu, os Beatles se divorciaram, Che Guevara se foi, Betinho partiu num rabo de foguete e o que sobrou foi o avesso do avesso do avesso, como diria Caetano. Sobrou a discriminação porque se é preto, porque se é pobre, porque não se tem isso ou aquilo, porque se gosta disso ou daquilo, porque se ama. Acreditar no amor é sofrer de risos e deboches alheios. Hoje, um poeta como eu, não tem utilidade alguma. O bonito hoje é o feio. Porque o feio é o espelho dessa gente que feito canibais vai se devorando, se matando, se explorando porque o lema é o seguinte: cada um por si e nenhum por todos.
Hoje o mundo é dos submissos, dos que tem sangue de barata, dos medrosos, dos que abaixam a cabeça e aceitam o resto do resto do resto. É muito mais fácil viver desse jeito. O pai do Chico Buarque, doutor Sérgio, reuniu todos esses adjetivos para traduzir a imensa capacidade de paciência do povo brasileiro em uma só palavra - cordialidade. Somos classificados como homens cordiais. Além de ser explorados e vitimados pela falta de respeito, achamos tudo bonito e natural. O yeah, o paraíso é aqui.
Os conquistadores chegam aqui e sem pedir licença passam fogo nos índios. Mas tudo bem, somos brasileiros e não desistimos nunca. Milhares de negros são trazidos para cá e tratados como animais. Mas tudo bem, somos brasileiros e não desistimos nunca. Homens tratam suas mulheres como mulheres de tanque e fogão ou mercadorias sexuais. Mas tudo bem, somos brasileiros e não desistimos nunca. Os militares invadem esse solo mãe gentil e mandam todo mundo calar a boca enquanto afundam o país. Mas tudo bem, somos brasileiros e não desistimos nunca. Vem a democracia e neo-liberais e neo-trabalhadores destroem esperanças e mandam a ética para puta que... Mas tudo bem, somos brasileiros e não desistimos nunca.
Como numa cadeia alimentar, essas macro relações são reproduzidas em nossa casa, em nosso trabalho, em nosso cotidiano de homens cordiais. Por políticos, por patrões, por amigos, por vizinhos, por familiares... Somos explorados, desrespeitados, desconsiderados dia após dia. Mas temos de ficar de boca fechada, afinal, precisamos do emprego e, principalmente, do salário no final do mês; precisamos não perder contato com aquela pessoa, afinal vai que se precise dela depois; precisamos do status quo com os nossos familiares, afinal o que vão comentar os vizinhos se não mantermos as aparências. E, em relação aos governantes, o pensamento é quase uníssono: "se eu estivesse lá faria o mesmo". No final do afinal, somos cordiais.
Mas a esperança não está perdida para sempre. Nem tudo é joio, nem tudo é trigo. Nesse duelo há os pacifistas que abaixam a cabeça, levando porrada, rastejando, alimentando-se na covardia dos porcos, mas também há os que mesmo levando bordoada continuam de olhos ao céu, tentando ver um sol, a promessa de dias melhores ou a luz no final do túnel. É muito mais confortável ficar na lama, caído, puxando os pés de quem está próximo para que essa pessoa caia também a tentar construir um novo futuro. Mas é muito mais reconfortante lutar para ficar em pé, não dobrar os joelhos para essa banalização, ou pior, para essa vulgarização da vida, dos sentimentos, das atitudes.
Diante disso, afirmo e reafirmo que o problema mor da humanidade é a derrocada do respeito. Atualmente, o respeito ao próximo é um artigo de luxo. Esse desrespeito sempre existiu, mas nas últimas décadas ele ganhou corpo e se procriou com mais intensidade e velocidade. E não é um desrespeito qualquer, mas um desrespeito transgênico que suporta tempestades, secas, pragas. Enquanto isso, o respeito anda mais frágil, como que sofrendo de osteoporose - pode se quebrar a qualquer sopro.
Confesso que está mais e mais difícil a cada dia encontrar inspiração para fazer poesia, para falar de amor. No entanto, deixo claro que não quero encampar aqui, com este texto, uma nova marcha por Deus, pela família e pela moralidade, em feitio daquelas realizadas pela aristocracia na década de 60, tampouco dizer "cansei" como vem fazendo um bando da elite paulistana.
Quem continuar a acompanhar minhas linhas, meus versos será testemunha de que continuo lutando pelo amor sem limites e cultivando o respeito a quem amo. Para quem pensou que eu iria desistir, jogar a toalha, quero pedir licença ao rei, mas não ao rei da Espanha, mas a outra majestade, para gritar: quero que meu amor me aqueça neste inverno e que tudo mais vá pro inferno.
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