Daniel Campos

Prosas

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Encontrados 3193 textos. Exibindo página 273 de 320.

23/10/2008 - Não existo

Um banco, uma árvore e uma marmita. A comida é fria, como as almas dos que passam por ali. Os carros vão passando em uma orquestra de buzinas. As bicicletas vão passando com suas rodas de aros e raios. Os pedestres vão passando em seu direito de ir e vir. E eu vou ficando, no pano de fundo, no plano do mundo, num pranto vagabundo como personagem coadjuvante de um livro sem fim. Até os pássaros cantam fora do tom que brota em mim. Eu não existo. Eu não existo. Eu não existo.

Entre um bocado e outro, vou feito um operário em construção. O suor no rosto, a fome batendo no coração. Não há mesas, velas, arranjos de flor, só há os dentes roendo e rasgando a carne escura. Os mendigos passam por mim e não me mendigam. Os pedintes passam por mim e não me pedem. As esperanças passam por mim e não me esperam. Os cachorros passam por mim e urinam no meu sapato, borrando a graxa. E a vida passa sem graça. E eu não existo. E eu não existo. E eu não existo....
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22/10/2008 - Ao seu passo, a poesia vai longe

Ao seu passo, a poesia vai longe. A viagem mais longa parece ser quando ela deixa o interior de mim para ganhar o papel. No entanto, as palavras não param de correr mundo, nem mesmo depois de serem tatuadas em uma folha em branco. Dia desses, elas foram ao Rio de Janeiro, em plena tarde de sol. Pertinho da princesinha do mar Copacabana, do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara, do cruzamento da Tom Jobim com a Vinícius de Moraes, elas foram parar na boca de Leda Nagle. A apresentadora do Sem Censura, exibido pela TVE Brasil, leu, ao vivo, uma crônica que há tempos escrevi sobre o cotidiano que a cerca. ...
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21/10/2008 - Vinte e quatro anos de silêncio

O coração de Eloá ficou em silêncio. Mas não foi o silêncio eterno, tampouco o quase silêncio do coma. Foram 24 anos do mais puro silêncio. Com Eloá, ele viveu durante quinze anos. Poucas vezes deve ter pulsado tão rápido quanto nos dias em que ficou à mercê do ex-namorado e atual assassino. Diante das ameaças, um pulso desafinado. Diante do choro da mãe, um pulso sufocado. Diante do ataque da polícia, um pulso desesperado. Diante da solidariedade da amiga, um pulso consolador. Diante dos tiros, um pulso saudoso....
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20/10/2008 - Ópera do operário

No alto da construção, com uma lata de concreto na cabeça, o operário olhou o mundo ao seu redor e chorou de soluçar. Peito em pranto, a lata balançou, o andaime tremeu. Entre tijolos e vergalhões, dobrou os joelhos, como se o céu lhe pesasse sobre os ombros e rezou mesmo sem saber rezar. Agradeceu, confessou seus pecados, pediu proteção e, sem saber o que aconteceria dali por diante, tentou voar. Abriu os braços, respirou fundo e, em feitio de asa-delta, saltou da laje.

Diante de seus olhos, uma criança revirava uma lata de lixo, uma mulher era espancada pelo companheiro, uma senhora era roubada em mil cruzeiros, um bêbado dormia pela sarjeta, um menino queimava uma pedra de craque, um jovem deixava os estudos de lado, uma garota era violentada sem amor, um homem abria a carteira vazia em troca de pão, uma vizinha fofocava com outra sobre a vida de alguém, um senhor chorava a dor e a falta de remédios, tratamentos, cuidados e, sem direção, um moço estendia a mão em busca de uma esmola... ...
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19/10/2008 - Sobressalto sem pára-quedas

O avião se preparava para correr asfalto. O trem de pouso se esticava na lentidão dos braços e pernas daquela mulher, que dormiu durante mais de três horas de vôo. Conheceria uma cidade nova, uma gente nova, um clima novo, mas só pensava mesmo no velho amigo que morava por ali. Será que ele já chegou? Será que ele vem mesmo me buscar? Será que ele vai gostar de mim? Mais de dez anos sem se ver e, quiçá, se falar, aquele possível encontro havia sido mais do que provocado. Não imaginou outra coisa nas últimas semanas. E como essas semanas demoraram a passar......
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18/10/2008 - Quem nunca...

Quem nunca caiu andando de bicicleta? Quem nunca parou para pensar no que há depois da morte? Quem nunca pegou fruta no pé? Quem nunca pulou uma cancela? Quem nunca sorriu sem motivo? Quem nunca comeu manga de se lambuzar? Quem nunca debruçou os olhos na janela e voou longe? Quem nunca saiu do ar? Quem nunca chorou por alguém? Quem nunca acreditou no impossível, no improvável, no invisível? Quem nunca tentou desvendar o amor, então sonhou, sonhou, sonhou...

Quem nunca cantou debaixo do chuveiro? Quem nunca se escondeu do espelho? Quem nunca desejou um belo sorvete com calda de chocolate em plena madrugada? Quem nunca esteve grávido de algum sonho? Quem nunca quis um milagre à pronta entrega? Quem nunca comeu maçã do amor e andou de roda-gigante? Quem nunca passou um domingo inteiro debaixo das cobertas? Quem nunca viajou planetas por meio dos acordes de uma canção? Quem nunca amou além da conta, então sonhou, sonhou, sonhou......
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17/10/2008 - Até onde você é capaz de ir?

Uma das atitudes românticas de maior sucesso na história da humanidade é a de Romeu e Julieta, que morreram por amor. É um típico caso onde, movido por um sentimento, ultrapassa-se a barreira da normalidade. Diante disso, será que é tão anormal assim o gesto do rapaz que mantém a ex-namorada seqüestrada por dias a fio? Esses rompantes do amor são totalmente censurados nos dias de hoje. Culpa do tédio o qual atravessa o romantismo. Não há nada de novo no ar. Flores e chocolates já estão mais do que batidos. Mas falta coragem para inovar. E, pior de tudo, falta coragem para assumir o que já é aceito nos filmes, no teatro, na literatura. Por que essa distância tão grande entre o vivido no real e o desejado na ficção? ...
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16/10/2008 - A totalidade caiu em desuso

De convulsões econômicas a uma nova mutação de répteis surgida em um povoado perdido na Oceania, eles dominam como ninguém. Ou, ao menos, dizem que entendem. Querem ser cientistas, filósofos, presidentes, reitores e até técnicos de futebol. E nem é mais preciso ter uma longa barba grande para fazer parte do clube de entendidos. O que era uma ordem de anciões virou uma legião de palpiteiros sem idade, sexo e endereço. Palpite para lá, palpite para cá, e o tico-tico está comendo todo o meu fubá.
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14/10/2008 - Pra valer a pena

Pra valer a pena, a vida não pode ser pequena. Pra valer a pena, há de haver um coração, um poema. Pra valer a pena, o resultado tem que ser dois no teorema. Pra valer a pena, vale sofrer com os leões da tua arena. Pra valer a pena, ria com hienas e voe sob renas. Pra valer a pena, há de se poetizar o trema. Pra valer a pena, encare o dilema sem se abater. Pra valer a pena, seja mais que prazer. Para valer a pena, não pode faltar um drama, um romance, um cinema. Pra valer a pena, a emoção tem que rasgar a cena. Pra valer a pena, há de se, absolutamente, viver. Pra valer a pena, há de se decidir entre o querer e o dês-querer. Pra valer a pena, há de captar um outro mundo em sua antena. Pra valer a pena, há de se jogar ao tema. Pra valer a pena, amena. Pra valer a pena......
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13/10/2008 - Foie Gras à brasileira

Senhor garçom, por gentileza, desce um foie gras. Foie Gras? Pelo nome, deve ser coisa de primeira, da grã-finagem, tipo aquele caviar cantado pelo Zeca Pagodinho. Bem, o prato é uma das iguarias mais sofisticadas da culinária francesa, com origem lá no tempo dos egípcios. Mas, depois de saber o significado e o modo de preparo, duvido que o apetite seja o mesmo. Vamos para a tradução ao pé da letra: foie gras significa fígado gordo. Fígado de quem? De pato ou de ganso superalimentado.

Para realçar o sabor, é preciso realizar a gavage, ou seja, estufar o fígado do ganso dando alimentação em excesso para ele. Dessa forma, o órgão cresce chegando a uma textura mais tenra. Mas isso é bom, afinal trata-se bem do bichinho. Não se iluda com isso, senhor garçom. Ou achas bom os produtores colocarem um cano de trinta centímetros na boca do animal injetando comida sem dó nem piedade. Um pato pode dobrar de peso acumulando gordura, principalmente, no fígado. Alguns chegam a morrer de tanto comer. Depois de tudo isso, acha ético, meu senhor, servir um foie gras?...
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