Daniel Campos

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23/10/2008 - Não existo

Um banco, uma árvore e uma marmita. A comida é fria, como as almas dos que passam por ali. Os carros vão passando em uma orquestra de buzinas. As bicicletas vão passando com suas rodas de aros e raios. Os pedestres vão passando em seu direito de ir e vir. E eu vou ficando, no pano de fundo, no plano do mundo, num pranto vagabundo como personagem coadjuvante de um livro sem fim. Até os pássaros cantam fora do tom que brota em mim. Eu não existo. Eu não existo. Eu não existo.

Entre um bocado e outro, vou feito um operário em construção. O suor no rosto, a fome batendo no coração. Não há mesas, velas, arranjos de flor, só há os dentes roendo e rasgando a carne escura. Os mendigos passam por mim e não me mendigam. Os pedintes passam por mim e não me pedem. As esperanças passam por mim e não me esperam. Os cachorros passam por mim e urinam no meu sapato, borrando a graxa. E a vida passa sem graça. E eu não existo. E eu não existo. E eu não existo.

Entre o arroz e o feijão, passam por mim um acidente e um vidente. Entre o arroz e feijão, um assalto e um sobressalto. Entre o arroz e o feijão, um homem que trai e cai. Entre o arroz o feijão, uma mulher que chora e vai embora. Entre o arroz e o feijão, um sorveteiro e um carteiro. Entre o arroz e o feijão, um namoro e uma quebra de decoro. Entre o arroz e o feijão, uma bronca e um peão que ronca. Entre o arroz e o feijão, a rua aponta e a lua anda tonta. Entre o arroz e o feijão, voam o medo e o passaredo do desassossego. Mas eu não existo. Mas eu não existo. Mas eu não existo e nem quero.


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