Daniel Campos

Prosas

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30/01/2010 - Que pena, velho, que pena...

O velho já não me conhece mais, já não fala coisa com coisa nem sabe quanto tempo faz. O velho se esqueceu da própria rua, já não decifra mais a lua e pouco importa se a terra se levanta seca ou com orvalho. Do trabalho ao torresmo, o velho deixou a esmo tudo o que mais gostava só pelo medo de ficar a sós consigo mesmo. O velho se esqueceu dos velhos tempos e hoje passa pequenino, maltratado e sem carinho porque optou por um desvio em seu caminho.

Ao mesmo tempo em que quer viver mais e demais, o velho que deu pra beber pede para morrer logo mais. O velho não sabe se ama ou se odeia o coração, se é época de colheita ou de plantação. O velho apostou que a intensidade de um novo romance poderia superar a nuance de um amor que ficou e perdeu. O velho perdeu as rédeas e vai de queda em queda, com febre adolescente e choro de menino carente nos olhos quase cegos de paixão intermitente. ...
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29/01/2010 - No quintal dos Barbosa

Billy comia a galha da roseira, Sansão afiava as unhas no cimentado, Dafne iniciava as obras de um novo buraco, Draco rasgava a coberta e Polly fingia a própria morte. Tudo normal no quintal dos Barbosa: muitos latidos, destruição e bagunça. Tudo ia bem até que a galinha do vizinho inventou de subir no muro e provocar quem estava quieto. E não eram as habituais galinhas d’angola que moravam na casa ao lado e, vez ou outra, davam o ar da graça. Era uma típica galinha de despacho: magricela e preta, com a crista tão vermelha quão um demônio. E a cachorrada estranhou a galinha que parecia o cão....
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28/01/2010 - Depois das onze

Já passa das onze e eu voltei a ser quem eu sempre fui mais uma vez. Em meio a insensatez, canta-se o fado, redescobre-se o prado e as voltas do mundo revoltam o vagabundo que faz da sarjeta sua maior e melhor opereta. No chão, o agreste de Tieta e no céu, uma lua preta. O anjo se esqueceu da letra e a noite surgiu clara como o dia no convés de Maria. Ai meu Deus, quanta melancolia no revés da noite fria.

A madrugada avança e em feitio de criança, já não sei quem sou. Será que sou o fadista, ou o vagabundo, ou o malabarista, ou o breu da lua, ou a madrugada crua, ou o anjo farrista ou o mundo sem motorista? Será quem eu sou? Será quem eu fui? Qual será a minha alegoria? Será que sou triste ou somente o lado B da alegria. Já passa das onze e cá estou, tão longe quão perto de mim, outra vez.


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27/01/2010 - O esquilo e a noz

Tem dia em que a gente vive e não viveu. É como se as horas passassem por nós sem desatar nossos nós. A noite chega e com ela uma sensação de que nada do que se queria foi feito. Quem já não se sentiu assim? E vem um desespero, um destempero, um vento mexendo nas folhas do coqueiro...

Em dias assim a nossa agenda biológica não combina com a mercadológica tampouco rima com a psicológica. E temos que cumprir tantas agendas que esquecemos de viver o dia como uma oferenda plena. Viver é mais do que um jogo de cena, do que uma única e solitária estrofe de poema... ...
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26/01/2010 - Corações de pano

No quarto dos fundos havia algumas caixas de bugigangas e outros cacarecos, um tapete do tempo de vovó, um telhado sem forro, livros abandonados e duas baratas de estimação que não incomodavam, tampouco assustavam ninguém. A janela dava para um terreno ermo, com árvores e horizontes a perder de vista. Os moradores da casa não costumavam passar muito tempo ali, apenas procuravam alguns pertences e logo deixavam o local.

Era um quarto abandonado. Ao contrário do que possa parecer não foi destinado à bagunça, mas ao convívio. Contudo, por questões místicas e metafísicas, não havia cristão que agüentasse ficar ali por muito tempo. Energias negativas, vibrações estranhas e arrepios inesperados eram captados ali. Podia ser besteira, mas o fato é que esse clima fantasmagórico afastava as pessoas dali....
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25/01/2010 - Uma casinha na lua

Senhor astronauta, encoste por gentileza o seu foguete porque eu quero uma informação: quanto custa um terreno na lua? Um terreno bem distante da Terra, numa quadra sem vizinhos, sem linha telefônica nem rua pavimentada. Se eu puder escolher, quero morar na lua minguante na qual caiba só eu e a criatura amada. Pode ser uma cratera bem larga com vista para uma noite estrelada.

Se puder me dar uma carona no seu foguete eu já levo meu amor, minha bagagem e um bilhete com a inscrição “não perturbe”. Tudo o que eu preciso agora é de uma casinha no meio do nada para eu viver em paz com minha eterna namorada de um jeito que ainda não pude. Não me importo com chuva de meteoritos, com ausência de gravidade nem com os mitos envolvendo distância e saudade. ...
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24/01/2010 - Terço das lágrimas de Nossa Senhora

Depois de tanto interceder e sofrer e consolar pode chorar. Chora, minha senhora, lágrimas de espinhos, lágrimas de sal, de sangue-vinho, lágrimas ásperas de sisal. Chora por tantos filhos perdidos, pela falta de heróis e por quantos bandidos. Chora um choro doido, puro e proibido. Chora tanta violência, chora por clemência, chora a inocência perdida de uma vida.

Chora um choro de santa e de mulher, mas, sobretudo, de mãe que tanto bem quer os seus. Chora a desgraça e o adeus. Chora, mãe chora, quem passa ao seu lado e ignora seus olhos molhados no altar. Depois de tanto querer ajudar, de tanto se sacrificar e ensinar pode chorar. Chora um choro de agonia, de pedra e hemorragia, chora em silêncio e aos soluços o choro da virgem Maria. ...
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23/01/2010 - Mulher de havaianas

Deus, ò dá-me a mulher que passa de sandália havaiana, como uma sangue-azul suburbana. A mulher que sobe e desce ruas com os pés seminus, cobertos e ao mesmo tempo expostos por uma tira plástica. E mais: Na mulher andante os pés gritos angelicais, são órgãos sexuais, calçados por hormônios, mistérios e fantasias. Deus dos plebeus, ò dá-me a mulher que cruza e me cruza de havaianas.

A mulher passa de havaiana como onda do Havaí, tão cobiçada quão avassaladora. A borracha da sandália amortece as rajadas e as correntes elétricas produzidas pelo corpo da mulher que ignora regras e protocolos. Ó Deus coloca essa mulher em meu colo. Eu quero essa aristocrata que, na solidão de seu quarto, deixa de lado a coroa e anda como bem quer – simplesmente fêmea e incrivelmente mulher....
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22/01/2010 - Amor cabeça dura

Entre a ternura e a agrura, vive o amor cabeça dura. Tão cabeça dura é o amor que tanto atura. Amor cabeça dura atura dores e desalinhos, espinhos e flores extrapolando limites de altura e largura. Um amor cabeça dura ninguém segura. Amor cabeça dura perde, ganha, bate e fura e deixa se furar pelas flechas de um cupido destemido.

O amor é cabeça dura, pois não tem remédio nem cura. Amor cabeça dura que é falta e fartura. Amor cabeça dura é candura que não se apura. O amor cabeça dura faz da loucura sua formosura. Ai amor cabeça dura que mesmo entre tantas provas é coisa insegura. Amor que mesmo diante de frase mais pura, não esconde a ferradura....
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21/01/2010 - Assédios da saudade

Se a saudade chegar até você e, por acaso, perguntar por mim, ò meu bem veja bem o que vai dizer, perguntar ou responder. Não vale mentir nem fingir pensando que não vai sofrer. Se optar por se calar, ou por dizer “talvez”, “quem sabe”, “não sei” ou por lhe indicar uma estrada errada, saiba que seu gesto não lhe valerá de nada. Nada, amada, nada...

Se a saudade perguntar por mim, sincera e afetuosamente, prefiro que diga que eu não presto e que me odeia e que esse assunto lhe chateia do que fechar os olhos e a boca para a saudade. Diga que me mandou embora, que me pôs pra fora e não quer nem ouvir falar de mim. Fale que eu não sou nada do que pensou, que não se interessa por onde estou ou vou, mas fale. Por favor, amor, não se cale. ...
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