Daniel Campos

Prosas

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19/02/2010 - Olha a rotina aí gente!

Cadê a pintura do rosto? A lágrima borrou. Cadê a fantasia? A enxurrada levou. Cadê a alegria? A quarta de cinzas findou. Cadê a poesia? O tempo rasgou. Cadê o sol? A noite apagou. Cadê o amor? O bicho devorou. Cadê o romance? O bicho tragou. Cadê a mulher? O bicho matou.

Que bicho é esse, José? É o bicho do dia depois de outro dia. De onde vem esse bicho, João? Ele nasce quando a ilusão se quebra ou é quebrada. Ai, meu Deus, é bom botar o pé na estrada pra fugir desse bicho que não sossega enquanto não deixa a gente doente de cotidiano. Cuidado com a mordida da rotina....
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18/02/2010 - Vem pra perto amor

Eu te amo a cada frase, a cada nota desta melodia que não canso de cantar em assovios pelo ar feito pássaro ferido, machucado de amar. Já escrevi seu nome na areia, já lancei suas rosas à maré-cheia, já injetei seu perfume em minha veia. Pela luz deste céu que me alumeia eu te quero amor maior amor do meu lado, como bem guardado. Não há nada mais incerto que viver sem ter você por perto.

Que saudade de ver meus anseios brotando em seus seios. Pra onde vão suas pernas nesse momento? Queria segui-las contra o vento rumo ao firmamento. Ai, lua eterna, conta-me o que faz meu amor, se ela adormeceu no último breu ou se ela voou nas asas de uma condor. Por aqui, faltam notícias e carícias suas. Por aqui, ninguém sorri e a dor é fina como um colibri. ...
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17/02/2010 - Homem de cinzas

Hoje entra em cena um homem feito de cinzas. São restos de fantasia ainda aquecidos dando forma a essa criação. O ritmo é outro, o objetivo é outro. Tudo é novo no homem que nasce depois do carnaval. É um homem de família, acima do bem e do mal. Um homem nu de personagens e adereços, um homem comum, com endereço e preço. São tantos risos, tantos beijos, tanto choro ardendo pelas cinzas que fazem este homem.

São romances, promessas fora de alcance, são nuances se misturando naquele DNA acinzentado. São vilões e mocinhas, são tamborins e pandeiros, são costureiras e marceneiros se encontrando naquele homem que nasce nu, sem enredo e com tanto medo. Com este homem nasce um novo tempo, de afirmação e perseverança. E é assim, num samba doido de esperança, que o homem volta a ser criança. ...
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16/02/2010 - Sumiço de mulher

É um pássaro no céu, é um vintém na mão, é uma folha de papel ao chão dizendo seu nome, seu nome, seu nome... Hoje eu acordei com fome de você e no primeiro reboliço sai pelas ruas tentando encontrar o porquê de seu sumiço. Será feitiço o que a levou? Será um bicho o que a pegou? Será que foi apanhada feito flor? Seja lá o que for, voou, voou, voou... E o beijo derradeiro segue em cortejo pela boca vazia, pela alma vazia, pela casa vazia...

Rolou pedra, desceu chuva e a lua pousou de viúva. O mundo virou de pernas para o ar e eu, aqui e ali, querendo lhe encontrar. Procurei pelas vitrines, pelas janelas dos arranha-céus, pela fenda de biquíni, por debaixo dos véus da cidade. E só encontrei, ai que maldade, as linhas da saudade. Por onde anda você? Será que se enfiou em algum buquê? Por onde anda você, que ninguém vê? ...
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15/02/2010 - Cuidado aí

É preciso ter cuidado meu bem. Fique atento. Não vá muito longe. Volte logo para casa. Cuidado aí pelas esquinas. Se cuide, cuida de nós. Como é terrível ficar longe. É como se um buraco se abrisse, como se o sorriso sumisse, como se uma parte de mim deixasse de existir. E até ontem ela estava bem aqui. Por isso que eu digo, menino, cuidado aí. Olhe bem por onde anda o meu amor. Por favor, cuide-se cuidando de nós.

Cuidado aí. Não se estresse, controle essa ânsia. Olha, já estou lhe fazendo uma prece. Esquece a distância. Eu já molhei as flores esperando por você. Eu estou com aquele vestido que tanto gosta, vê?! Tantos cuidados, por quê? Porque todo amor é cuidadoso, zeloso com seu bem. Cuidado com as estradas, com os céus, com o trem de asas. Cuidado aí e vê se volta logo para casa. ...
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14/02/2010 - A última corsária

Depois do último gole de rum, ela saiu por aí pirateando por entre ilhas desérticas e tubarões esfomeados. Estava decidida que não mais navegaria. Foram anos e anos à deriva, cortando mares, saqueando embarcações, pulando para lá e para cá com sua perna de pau. Quantos sóis nasceram e quantas luas morreram no fundo de seus olhos de vidro. Mas já estava cansada, depois então que o papagaio que andava em seu ombro foi embora perdeu totalmente o ânimo.

Começou a beber mais e mais. A tripulação começou a lhe olhar desconfiada, afinal fazia dias que ela não jogava ninguém ao mar. A última corsária estava em crise existencial, emocional, zodiacal. E isso afetava todo o curso marítimo. Capitães e marinheiros perderam o medo de navegar. E com isso, perdeu-se a graça. Até mesmo o chapéu negro que lhe identificava de longe ela deixou para lá. Passava a maior parte do tempo trancada no porão do navio com garrafas de rum. ...
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13/02/2010 - Mascarados

Entre passadas para lá e cá, pelo baile de máscaras quero achar sua boca. Vamos tirar as fantasias e dar início a uma noite louca. Uma noite sem colombinas ou pierrôs ou arlequins. Uma noite sem desfile, sem escolas, sem jurados. Uma noite sem platéia, sem reis ou rainhas. Uma noite sem alegorias, baterias ou alegrias temporais. Uma noite sem blocos, sem fogos, sem carnavais. Uma noite ausente de cordões e foliões. Uma noite despida de qualquer açoite. Uma noite sem tamborins, sem querubins, sem fins premeditados. Uma noite sem traições, recuos ou repiques de saudades. Uma noite sem ruas e carros enfeitados. ...
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12/02/2010 - Fome, fome, fome

A fome me consome. Fome de um tempo que acabou de acabar. Fome de um sonho que sumiu das prateleiras. Fome de uma vontade nunca saciada. Fome de um sol comendo a madrugada. Fome de um cheiro que não se encontra por aqui. Fome de alguém que decidiu partir. Fome de um tempero raro e caro que foi embora do jarro. Fome de uma noite tranqüila de sono e amor. Fome da maçã do paraíso. Fome de uma constante inconstante. Fome que nunca dorme. Fome colorida e preta e branca. Fome tanta. Fome de uma sopa de letrinhas só com o alfabeto que forma seu nome. ...
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11/02/2010 - Mulher verde-limão

O sol cobre a cidade com seu manto de fogo. E por entre pedras e flores abrasivas, surge uma mulher morena levando em seu corpo uma blusa verde-limão. O tecido chega a brilhar de forma cítrica diante dos olhos, refrescando a vista de quem a vê passar sem se preocupar com os quarenta graus. Sua beleza parece ter viçado com a explosão de raios ultravioletas que caem sem dó de um céu cheio de buracos.

Entre o sonho e a realidade, aquela mulher passa deixando gotículas de um sumo delicado pelo caminho. Os deuses colaboram e levam para longe qualquer possibilidade de chuva. De sombra, só aquela que pinta o rosto da mulher. No mais, tudo é claridade e vaidade na mulher que segue misturando na medida exata ciano e amarelo. Diante da mulher que verdeja o cotidiano, o canto e o silêncio se encontram verdes na partitura. ...
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10/02/2010 - Boas-vindas a Pena Branca

"Oh Deus salve o oratório
Oh Deus salve o oratório
Onde Deus fez a morada, oiá, meu Deus
Onde Deus fez a morada, eiá"

Foi cantando assim baixinho, num tom meio caipira, que seu Antônio penteou o cabelo depois de tomar um banho de luz bem demorado e colocou sua melhor túnica (os anos de evolução espiritual fizeram com que suas roupas terrenas fossem esquecidas). Toda essa produção foi para receber Pena Branca que, depois de 70 anos de caminhada, partiu em busca de outros sertões. ...
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