Daniel Campos

Prosas

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21/11/2009 - Vida além da vida

Nem na rua São Miguel, nem no mercadinho, nem no brechó da igreja São Benedito... ninguém mais a viu em lugar algum. Dizem que ela descansou; que partiu cedo demais; que finalmente encontrou a paz. Há um ano dona Adélia, brasileira filha de italianos, casada há mais de cinqüenta anos, mãe, avó e bisavó, dona de casa e ministra da Eucaristia de Nossa Senhora de Monte Serrat desapareceu. Curiosamente, ela deixou todas as suas roupas, os seus sapatos e, até mesmos, seus óculos arredondados. Nem mesmo a aliança levou consigo. Corajosa, quis partir completamente livre para dar início a uma vida nova. ...
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20/11/2009 - Consciência Negra

Joaquim Nabuco mandou avisar que a obra da escravidão será destruída. No aviso não tinha data nem hora, mas se Joaquim Nabuco disse vamos comemorar desde agora. Chega de preconceito. Chega de discriminação. Se o território brasileiro completa o africano no mundo de Gaia por que separar? Somos todos filhos do mesmo barro e do mesmo sopro, somos uma só raça... Por que fracionar se podemos somar, juntar, rimar nossos corpos multicoloridos numa mesma poesia humana.

Martin Luther King sonhou, mas foi Joaquim Nabuco quem mandou avisar que os chicotes no lombo dos negros não vão mais estalar. Eu quero cantar uma democracia racial pra valer. Chega de racismo velado. Chega de deixar o negro de lado. Vamos misturar samba e fado nesse enredo tropical. E quando os vestígios da escravidão forem superados poderemos nos organizar enquanto nação. Até então seremos apenas, como escreveu o poeta baiano, um nome sem país. ...
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19/11/2009 - Sol ou escuridão a Cesare Batisti

Imagine viver o resto de seus dias sem o mínimo contato com o sol. Condenado pela justiça italiana à prisão perpétua com privação total de luz solar, Cesare Batisti passa grande parte de seu tempo escrevendo sobre seu passado como fugitivo. Não é preciso ser vidente para saber que seu futuro também não será diferente. Mesmo que seja extraditado ele continuará, de alguma forma, fugindo das sombras que criou e das que foram criadas em torno de sua figura.

O italiano foi condenado pelo seu excesso de paixão. Lutou, amou, acreditou ao extremo que poderia vencer o que considerava um período de trevas. Desafiou práticas fascistas, grupos paramilitares e terroristas pagos pelo governo italiano da década de 70. Contudo, o homem que quis pintar o mundo de vermelho-comunista acabou tendo suas mãos borradas de vermelho-sangue. De ativista político injustiçado foi transformado em assassino cruel. ...
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18/11/2009 - Marighella, o último dos heróis

Quanto tempo leva para nascer um herói oficialmente falando? A resposta para essa pergunta é relativa, já que isso depende, sobretudo, de vontade política e midiática. No caso de Carlos Marighella, esse processo demorou 40 anos.

Marighella era o líder da Ação Libertadora Nacional quando foi morto em uma emboscada no ano de 1969. Morto pela ditadura. E não há como contestar. A morte do inimigo nº 1 do regime militar foi reconhecida pela Comissão de Anistia do governo federal, em 1996, como responsabilidade do Estado. Morreu por acreditar no socialismo, na liberdade, na igualdade....
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17/11/2009 - Deu no The New York Times

Deu no The New York Times que nosso amor foi além do esperado pelos céticos da bolsa de valores amorosa. Uma espécie de Dow Jones do coração. E os norte-americanos, tão nacionalistas, tiveram que se dobrar ao nosso romance tupiniquim. Foi incrível nosso beijo na Wall Street se transformar em evento principal, ainda mais num local dado à multiplicação de dólares. Se ainda fosse Hollywood ou Las Vegas o cenário desse beijo a reação da platéia seria mais natural. Contudo, mesmo no maior centro financeiro do planeta, nosso amor foi noticiado, falado, registrado como cena de um filme sem data para morrer....
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16/11/2009 - Receitas para uma vida saudável

Para ter uma vida saudável é preciso viver além de dietas e pensamentos positivos. É preciso se valer de algumas simpatias e mandingas. Começando pelo trivial, pode começar a carregar uma pata de coelho no seu chaveiro e tomar um belo banho de sal grosso. Cuidado com as faxinas excessivas, afinal aranhas, grilos e lagartixas são bem-vindos para trazer boa sorte. Ter um elefante evita falta de dinheiro. Mas atenção: ele precisa estar sobre um móvel, com a tromba erguida e de costas para a porta de entrada. Caso contrário, nada feito. ...
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15/11/2009 - É só pão

Pela manhã, em especial, há uma multidão que caminha carregando sacos de papel tão frágeis quão desejados. São pessoas amanhecendo o dia em busca de pão. Pão quentinho, pão fresco, pão nosso de cada dia. Muitos, ainda com olhos de sono, correm à padaria mais próxima. E, entre pães, encontram vizinhos, conversam com conhecidos, reparam no tempo e no movimento de casas e ruas recém-acordadas. Há toda uma poética no ato de comprar pão. Pena que essa poesia não é mais completa, já que “fazer” pão deixou de ser uma arte sagrada. ...
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14/11/2009 - Bastidores do amor

Sem qualquer aviso, o amor chega na ponta dos pés para não acordar as defesas do medo. É como um vírus trazido pelo vento, entrando pela fresta do nosso corpo sem ninguém perceber. Ao contrário das pestes, tem aspecto doce e discurso leve. No entanto, toda candura se finda quando o amor violenta o pretendido coração. Em poucos segundos toma-o com a virulência dos exércitos das antigas civilizações. Não é à toa que amor e coração se confundem, afinal, é ali que o sangue se derrama por todo o corpo. Amor, plasticamente, é paraíso. Fisiologicamente, guerra. ...
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13/11/2009 - Paraskavedekatriaphobia

Vista preto e vá para aquela encruzilhada de costume. Depois de fazer uma fezinha no número 13, vou ao seu encontro. Quero lhe presentear com cravos de defunto. Quero contrariar o infortúnio e lhe amar com toda sorte. Quero transformar pragas em beijos e fazer de seu corpo meu amuleto. E assim, rogar-lhe bem alto por meus descaminhos. Com pipoca e cobertores, vamos nos abraçar assistindo a saga do psicopata Jason Voorhees. Afinal, nada é normal quando se trata de sexta-feira 13.

Paraskavedekatriaphobia. Não precisa temer o dia de hoje. Se bem que um pouquinho de medo faz bem para encutar a nossa distância. Além do mais, o medo provoca e seduz. Ao contrário de nos amarmos como anjos, vamos experimentar o amor dos morcegos ou das aranhas. Vamos nos dependurar, tecer a nossa cama e nos espreitar num ângulo de 180º. Vamos nos caçar e nos acabar num caldeirão cheio de sais. À meia-noite quero brindar nosso encanto com um cálice da poção das bruxas. ...
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12/11/2009 - Grande Deus

Que mundo nós teremos daqui a alguns anos? Eu sei que não é sua culpa, grande Deus, mas não há como eu não lhe preocupar. Os especialistas em diagnosticar o final dos tempos dizem que o planeta entrará em colapso em 2025, ano em que três bilhões de pessoas não terão acesso à água potável. Ao contrário de um dilúvio, uma desertificação consumirá o mundo que nos cerca.

Quantos sofrerão de sede, desidratação e outras doenças físicas, emocionais e sociais? Afinal, o cordão dos excluídos, que já conta com um número absurdo de integrantes, somar-se-á aos 200 milhões de refugiados climáticos que terão de correr em busca de água, de alimento, de vida. ...
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