Daniel Campos

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15/11/2009 - É só pão

Pela manhã, em especial, há uma multidão que caminha carregando sacos de papel tão frágeis quão desejados. São pessoas amanhecendo o dia em busca de pão. Pão quentinho, pão fresco, pão nosso de cada dia. Muitos, ainda com olhos de sono, correm à padaria mais próxima. E, entre pães, encontram vizinhos, conversam com conhecidos, reparam no tempo e no movimento de casas e ruas recém-acordadas. Há toda uma poética no ato de comprar pão. Pena que essa poesia não é mais completa, já que “fazer” pão deixou de ser uma arte sagrada.

Conta-nos a história de que antigamente se abria a massa do pão e, sobre ela, desenhava-se três cruzes dizendo:

"São Vicente te acrescente,
São João te faça pão,
E Deus te cubra com sua bênção."

Pelo visto, hoje em dia ninguém mais se preocupa com essas cruzes. O pão, sagrado em muitas religões, hoje, assim como quase tudo, tornou-se produto de massa. Perdeu o encanto, o mistério e o sabor. O pão tornou-se símbolo de comida vulgar e barata, encontrado em cada esquina, feito por qualquer um. Tanto que virou moeda eleitoral. O que há de político por aí dando pão em troca de voto... Sem contar que o fruto do trigo sofre severos ataques por parte daqueles que pregam uma alimentação saudável. Pão engorda, pão aumenta o colesterol, pão dá câncer...

Embora seja dado a muitos formatos, nomes e sabores, o pão foi reduzido ao título francês. Os cestos das padarias, dos supermercados e das vendinhas estão repletos de pães franceses. Fornadas e mais fornadas são feitas a todo momento. Diante dessa produção maluca como dar conta de fazer a tal benzedura? Os pães são feitos e comercializados sem as devidas bençãos. O que isso intefere no sabor? Na boca de quem nunca conheceu um pão feito a partir de cruzes, nada. Mas para quem já experimentou...

Lembro dos pães feitos pelos antigos, que tinham mãos calejadas de farinha e rostos amorenados pelo calor das fornalhas. Tinham gestos firmes e candura durante o processo de feitio do pão. Os olhos eram sérios, no entanto, as bocas diziam palavras de fé, estritamente ligadas ao astral. Afinal, fazer pão é quase um ritual. Ou melhor, era quase isso. Hoje a pressa tomou de conta e derrubou os ritos, os mitos, enfim, o jeito bonito de viver as coisas. O mundo tem perdido seu valor simbólico. Mas quem se importa com isso? É só pão.


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