Daniel Campos

Prosas

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01/11/2010 - Coelhos, verdadeiramente, coelhos

Ao contrário de confeiteiros, exímios produtores de ovos de Páscoa, Leleco e Pitoco se mostraram verdadeiros construtores. Pelo quintal, buracos e mais buracos foram abertos numa engenhosidade de causar espanto. Podiam muito bem trabalhar na expansão da malha metroviária, mas ainda não tinham idade para isso. Ao contrário de comerem cenoura e ração, preferiam comer flores, caixas de papelão e, até mesmo, o milho das galinhas. Roíam o dia todo com aqueles dentes de Mônica.

Ao contrário de ficarem em cercadinhos, gostavam mesmo de correr terreiro. Dispensavam o telhado por uma boa chuva, trocavam o dia pela noite, equilibravam-se em poleiros como se fossem circenses. Ao contrário de se acuarem dentro de seus buracos, provocavam os cachorros e enfrentavam os galos. Ao contrário de carinhos e bajulações, escolheram viver como bichos do mato. Fugiam das nossas mãos com pulos e dribles de deixar qualquer locutor de futebol maravilhado, sem fala. ...
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31/10/2010 - Amor e eleição

No amor não existe direita ou esquerda, apenas amor. Amor não se restringe a uma só ideologia, não se acorrenta a uma só corrente, não cabe em uma só bandeira. Amor é plural. Amor é discurso, promessa e debate. Amor é político e, ao mesmo tempo, apolítico. Amor é propaganda. É preciso a todo instante tentar conquistar seu eleitorado, que contempla a criatura amada e seu círculo de confiança. Amor é obra, muita obra. É fundamental construir caminhos, alianças e vitórias. Amor é ficha limpa. Não adianta tentar esconder o passado, mas se já foi condenado ainda tem chance de buscar o perdão. ...
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30/10/2010 - Cadê o rei do baile?

Hoje amanheci com vontade de comprar uma vitrola e um bom disco de Tião Carreiro. Hoje amanheci querendo voltar a um tempo que não volta. Hoje amanheci querendo ver aquelas canelas dançando ao som de um violeiro. Hoje amanheci querendo acordar dez anos atrás no Sítio Boa Vista. Hoje amanheci com um gosto danado de passado na boca, como se a saudade tivesse me roubado um beijo. Hoje amanheci com desejo de viver aquela alegria simples e inocente outra vez, pelo menos mais uma vez.

Hoje amanheci assoviando modas e mais modas de viola. Hoje amanheci gastando sola, querendo me encontrar com Tião Carreiro. Hoje amanheci querendo rir e, me embalar, me emocionar e chorar diante daquele cavalheiro que curvava damas e vassouras pelo salão. Hoje amanheci perguntando ao vento pelo paradeiro daquele dançarino. Hoje amanheci comprando costela pra churrasco, amassando limões pra caipirinha e quebrando o sol na palhinha do chapéu que me ensinaram a usar tão bem. ...
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29/10/2010 - Capítulo 57

Quando Jhaver chega a sua casa depois de resgatar alguns espíritos acabados de desencarnar após um acidente de trem, um tanto quanto cansado pela energia suja que acumulou pelo caminho, depara-se com Perrot, aquele anjo castigador que sempre quis o seu posto, esperando-o, devidamente acomodado em uma cadeira, como se fosse visita.

- Quem diria que o senhor dos castigadores se tornaria um cordeirinho.

Jhaver silencia.

- Quando me falaram eu não acreditei. Mas vejo que está mesmo disposto a se esforçar para convencer os outros de que se transformou em um samaritano. Está com uma aparência horrível. Não tem saudade do tempo em que essas mudanças de meio e campos energéticos não lhe abalavam? ...
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29/10/2010 - Saudade pescadora

Perto do ribeirão havia uma saudade pescadora. Ela molhava os pés, lançava sua rede à solidão e pergunta ao vento: quem és tu que eu não te vejo? A saudade trançava fios de rede e destino e navegava pelos rios salgados do oceano sem ter direção ou plano. Acendia suas velas, conversava com orixás, abria suas velas, voava em feitio de sabiá do mar. E quando ia puxar sua rede não achava nada, só um monte de lembrança embaraçada e um vazio que dava corrupio no seu coração.

Pobre saudade pescadora, ferida pelos anzóis da ausência. Por mais que se esforçasse e força botasse não conseguia jogar sua rede a ponto de alcançar a distância necessária para aliviar seu mal. Mais do que distância de espaço, a saudade sofria de distância temporal. Quanto tempo se passou do começo ao final de sua existência sem que houvesse meio. O meio se perdeu em algum lugar daquelas águas que voltam. Águas correntes. Águas passadas. ...
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28/10/2010 - Santa chuva, chuva santa

A santa chora tantas mães sem filhos, tantos filhos sem mãe. A santa chora pelos meninos do sinal, do craque, dos fuzis. A santa chora tantas mortes em vão, tantas vidas não vividas. A santa chora uma série de crucificações diárias. A santa chora pela falta de arrependimento, de misericórdia e compaixão. A santa chora pela humanidade ter sido dominada pela cegueira, pela surdez, pela insensatez. A santa chora, mesmo com tanto poder, a sua impotência diante da realidade da cidade dos homens.
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27/10/2010 - Amor, amor, amor... amor

Amor, desesperadamente, amor, vem ao meu socorro porque morro de amor. Amor, não se negue amor, a socorrer um filho seu nessa selva de amor. Amor, amor, amor, preciso me alimentar de amor, amor demais. Amor que bom estar ao seu lado e poder contar com o seu fado no meu tango. Amor, por favor, amor, abençoa o nosso amor que nasceu do amor maior que há em matéria de amor. Amor, pelo amor de deus, não me acene adeus jamais. Amor, por favor, mata-me de amor antes de se indispor ao meu amor.
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26/10/2010 - Fuga a dois

Vamos, vamos, apresse-se, o tempo não irá nos esperar por muito tempo. Vamos tomar rumo, ganhar prumo, conjugar sumo na primeira pessoal do plural. Vamos pegar a primeira estrada que vier, independentemente de onde ela der. Vamos pegar carona na vassoura da bruxa, na cauda do cometa, na barbatana do tubarão. Vamos roubar o cavalo do príncipe, o cadilac do rei, o 14 bis de Dumont. Mas vamos, vamos embora que é hora de ir. Vamos fugir, partir, fluir pelas estradas alaranjadas.

Vamos, vamos, cuidado, não se esqueça de nada e nem traga coisas demais. Vamos simplesmente com a bagagem necessária, no caso, eu e você, você e eu. Vamos sem se despedir de nada ou ninguém. Vamos, vamos além. Vamos que nosso tempo é curto pro tempo que a gente tem. Vamos rumar na canoa do índio, no helicóptero do deputado, na garupa do tropeiro. Vamos andar no monociclo do palhaço, no balão colorido, na nave espacial do extraterrestre que pousou no quintal. ...
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25/10/2010 - Tende ânimo

Não desanima que a jornada é longa e, sem dúvida, novas, esperadas e desconhecidas flores podem nascer ao longo do caminho. Existem anjos que semeiam a nossa estrada. Lembra-se dos finais felizes das histórias de ninar? Pois bem, ainda não chegamos ao final. Agora, é preciso que tenhamos força para seguir em frente, mesmo pisando em pedras e espinhos por um tempo, para colher essa semeadura. De que adianta esmorecer, baixar os olhos, desistir de prosseguir? O alimento preferido da depressão é a própria depressão. Quando não há reação contrária, ela cresce e se multiplica rapidamente. ...
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24/10/2010 - Auxiliai

Hoje é dia de Maria. De Maria menina, aquela de olhos de quartzina. Hoje é dia de levar rosas à capela, de acender vela aos pés da santa que nos auxilia. Hoje é dia agradecer a uma força tanta, de rezar com lágrimas e nós na garganta. Hoje é dia de Maria. De Maria e seus auxílios, Maria e seus filhos. Hoje homens, mulheres e anjos cantam estribilhos à virgem das virgens. Hoje é dia de alegria, Maria. Hoje é dia de poesia, Maria. Hoje é dia de Maria, a sétima cavalaria que sempre se dispõe a nos salvar. Hoje é dia de Maria, senhora da estrela guia que se põe a brilhar. ...
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