29/10/2010 - Capítulo 57
Buenos Aires: o centro do mundoQuando Jhaver chega a sua casa depois de resgatar alguns espíritos acabados de desencarnar após um acidente de trem, um tanto quanto cansado pela energia suja que acumulou pelo caminho, depara-se com Perrot, aquele anjo castigador que sempre quis o seu posto, esperando-o, devidamente acomodado em uma cadeira, como se fosse visita.
- Quem diria que o senhor dos castigadores se tornaria um cordeirinho.
Jhaver silencia.
- Quando me falaram eu não acreditei. Mas vejo que está mesmo disposto a se esforçar para convencer os outros de que se transformou em um samaritano. Está com uma aparência horrível. Não tem saudade do tempo em que essas mudanças de meio e campos energéticos não lhe abalavam?
Jhaver permanece em silêncio.
- O anjo que antes fazia questão de mandar espíritos e mais espíritos para o Umbral, hoje vai até lá para resgatá-los. O anjo que chicoteava, hoje estende a mão. O anjo que humilhava seus castigados, hoje se humilha diante deles. O anjo que impunha medo, hoje teme e, quiçá, treme.
Jhaver tenta se esquivar, mas Perrot o cerca.
- Está fugindo? Não, não acredito. O senhor dos castigos está fugindo. É uma mudança de comportamento muito grande em um prazo de tempo muito curto, não acha Jhaver?
Sem agüentar mais a provocação, o anjo negro quebra o silêncio:
- Não lhe devo satisfações. Ponha-se daqui pra fora!
- Eu sabia que aquele não era você. Não disse que era muito pouco tempo para tamanha mudança? Eu tinha certeza de que o “novo Jhaver” não passa de uma fraude. O mau- humor continua o mesmo, o autoritarismo também.
- Diga logo o que quer.
- Nada de mais. Os amigos não podem ter saudade e se reencontrar?
- Mentiroso.
- O samaritano, feito de amor e bondade, está me julgando?
- Vamos, diga logo a que veio.
- Vim conferir de perto sua suposta transformação. E devo confessar que gostei do que vi. Afinal, vi o velho castigador de sempre.
Jhaver se enfurece e abre suas asas, levando Perrot ao desequilíbrio e à queda. Ele também não consegue abrir os olhos diante da luz que emana daquelas asas. Em contra-ataque ou defesa, esgarça suas asas bem mais escuras e menores que as de Jhaver. Para não ferir os olhos, conversa de costas para o anjo negro.
- Como fez para conseguir essas asas brancas? Isso não deve passar de um truque, um blefe. O que pretende, Jhaver?
- Não tenho pretensão alguma, apenas quero evoluir como um espírito de luz ajudando quem precisa de ajuda.
Perrot gargalha.
- Não me faça rir. O homem que chicoteou milhares de espíritos encarnados e desencarnados agora quer ajudar os outros por toda eternidade?
- Por que não?
- Porque essa não é sua natureza. Você é um castigador e não um samaritano.
- Eu tenho o direito de mudar os rumos da minha existência, praticar o livre-arbítrio.
- O problema não é ter ou não direito, mas a razão dessa mudança. É isso que não me convence.
- Não quero nem preciso lhe convencer.
- Isso tem alguma relação com aquele humano, o Sebastian, não tem? Foi ele o seu último castigado.
- Deixe-o fora disso.
- Como aquela criatura insignificante conseguiu amolecer seu coração? Vou descobrir, mas acho que o real motivo está ligado a suas vidas passadas. Estou certo?
- Não ouse me investigar, você não tem autorização ou competência para isso.
- Cale a boca! Agora você não é mais meu chefe. Eu sou um castigador, só não fui escolhido líder porque eles ainda acreditam que você vai voltar a ocupar seu antigo posto. Eu quero e preciso lhe desmascarar. Por isso estou aqui e vou continuar no seu encalço até ter sucesso.
- Deixe-me em paz. Não posso ser culpado pela sua incompetência. Você e seus correligionários tiveram a chance de disputar o meu lugar por várias vezes e sempre foram derrotados. Fracos! Despreparados! Nem mesmo agora que deixei o Conselho dos Castigadores você ou um dos seus conseguiu assumir a liderança do grupo.
Mesmo enfraquecido pela força das asas brancas, Perrot não perde a empáfia e propõe um acordo:
- Tudo bem, eu aceito uma trégua se você me ajudar a ser o líder dos castigadores.
- Nunca.
- Isso significa que você quer o seu posto de volta?
- Não. Isso significa que não vou apoiar um espírito com a sua índole para chefiar uma ordem tão importante como o Conselho.
Perrot tenta investir para cima de Jhaver, mas novamente vai ao chão.
- Agora, se você quiser ajuda para se tornar um espírito de luz, para se arrepender das coisas ruins que fez, eu estou à disposição.
Jhaver estende a mão.
Irritado, Perrot se levanta sozinho com dificuldade e aos tropeços, gritos e ameaças sai de forma tempestuosa.
Ao longo de sua saída, deixa claro que vai acabar com Sebastian, seu pupilo e potencial objeto de fraqueza.
Diante daquela discussão que mexeu com a vibração da colônia, alguns samaritanos já estavam do lado de fora da casa de Jhaver esperando a hora certa de agir, caso necessário.
Perrot vai embora e Jhaver fica pensativo, com ares de preocupação.
Benjamin, um dos espíritos que estavam ali, bate em seu ombro e comenta:
- A guerra ainda não acabou.
Na crosta terrestre, a entrevista de Sebastian causa um tremendo alvoroço. O jornal vende vertiginosamente a ponto de haver necessidade de novas edições. O conteúdo se espalha pela internet, vira assunto de televisão e rodas de conversa na rua, em casa e no trabalho. Não se fala em outra coisa.
Religiosos protestam. Padres e pastores classificavam como absurdo a existência de um Deus castigador. Formadores de opinião questionam. Nas ruas, há quem acredite e quem duvide de Sebastian. No entanto, todos comentam.
Outro jornal, um desses tablóides de forte apelo popular, traz uma matéria com a senhora que visitou Sebastian em busca de um contato com a filha morta por um erro de medicação. Palavras e lágrimas que só fazem aumentar a comoção em torno do promotor.
Conforme prometido, Marcel Bresson, o famoso espírita francês, dá declarações confirmando as informações de Sebastian em uma coletiva de impressa.
Eis então que as coisas tomam uma dimensão ainda maior. Lideranças espíritas fazem barulho, mas respeitam a opinião de Bresson. E os veículos de informação dão bastante espaço e credibilidade para ele, ainda mais quando diz que veio para Buenos Aires somente por conta de Sebastian.
De maneira alguma estava mentindo. No entanto, todos que o conhecem estranhavam esse excesso de exposição. Embora sempre lutasse para divulgar o espiritismo, Marcel nunca gostou de aparecer, ainda mais em casos sensacionalistas como esse. A razão que o levou a adotar essa postura colocava mais frisson em torno do caso Sebastian.
Pessoas se aglomeravam em frente à delegacia. A polícia teve que organizar um cordão de isolamento para deter manifestantes, curiosos e cidadãos que queriam ser atendidos pelo homem que conseguiu converter um castigador. O boca a boca lhe atribuía uma série de milagres e profecias. Taxavam-no de santo e demônio, de louco e de impostor.
Começam a chegar jornalistas de todas as partes do mundo. Segundo boatos, o papa divulgaria em breve uma nota pública condenando e, até mesmo, excomungando Sebastian por tais ofensas à Igreja.
Diante de tais medidas, o delegado proibiu qualquer visita a Sebastian que não seja da parte de sua família ou advogado.
Como não tinha defensor e os parentes não o visitavam, ele estaria condenado a permanecer isolado, em completa clausura, nos próximos dias. No mesmo boletim divulgado pela polícia, cogita-se a possibilidade de Sebastian ser transferido para um local, cujo endereço será mantido em segredo.
Planeja-se uma operação estratégica para enganar repórteres, com várias viaturas deixando a delegacia ao mesmo tempo. Coisa de cinema. Sebastian estaria em um desses carros. No entanto, levantava-se a dúvida se Jhaver ou algum outro espírito seria capaz de interferir provocando a fuga do promotor.
Verdade ou não, o fato é que tudo está sendo distorcido e redimensionado.
A falta de conhecimento em torno do universo espírita leva indivíduos a pensarem que Sebastian ou os espíritos que o acompanham poderiam causar uma espécie de apocalipse, com raios, tremores, bolas de fogo e dilúvios.
Para agravar o clima de tensão, cientistas previram a chegada de um tsunami à costa de Buenos Aires. Era o fato que faltava para a população acreditar no poder de Sebastian. Com faixas, apitos e cornetas, manifestantes pediam a soltura imediata do promotor com medo do fim do mundo.
Vários advogados, muitos de renome, se apresentaram para defender gratuitamente o marido de Malena. Afinal, a publicidade em torno do nome dele está alta e pode render lucros incalculáveis.
No entanto, o prisioneiro agradeceu e recusou todas as ofertas de defesa.
Diante do fato dele querer se autoflagelar com aquela prisão, não havia mais dúvida de que Sebastian era um cavaleiro do apocalipse, vindo para anunciar o fim dos tempos e a existência de um Deus que queria castigar a humanidade por suas culpas e pecados.
Revoltados com a continuidade da prisão, populares avançam sobre a delegacia, atirando pedras, incendiando carros e agredindo agentes. Querem o promotor a qualquer custo. Policiais disparam. Ferem e até matam uma mulher.
O clima está insuportável. O governo coloca o exército nas ruas. A imprensa apelida esse episódio de “cruzada espírita”.
Diante das manifestações exaltadas, a Justiça não tem alternativa senão antecipar o julgamento que acontecerá em cinco dias, em local reservado, sob proteção das forças armadas. As testemunhas de acusação e defesa também receberão escolta policial durante esse período. Também foram deslocadas tropas para proteger a casa de Malena, em razão da presença de populares por lá também.
Diante dessa confusão, Jhaver resolve agir e incitar procuradores a investigarem a internação de Malena, uma vez que ela é testemunha chave nesse julgamento. Há tempos ele havia pedido autorização para fazer isso. Diante de tantas negativas, desiste de esperar, rebela-se e envia pensamentos no intuito de provocar essas pessoas.
Seu gesto dá resultado.
Munidos de ordem judicial, procuradores vão até a clínica onde Malena, Micaela, Valentina e Tomas estão internados. Para surpresa das autoridades, verifica-se que todos estão recebendo tratamento abusivo de sonoterapia.
Segundo relato dos procuradores, essas quatro pessoas estavam sendo mantidas sedadas, sem necessidade médica. É aberto um processo contra Alicia, responsável pela internação.
Ela se defendeu dizendo que fez isso para poupar os familiares dos transtornos e ameaças provocados por Sebastian. Alicia e a clínica são indiciadas criminalmente.
Todos, até mesmo as crianças, foram encontrados em estado de dormência, como que embriagado pelo efeito dos remédios. A medicação foi suspensa e eles foram conduzidos a outra clínica, para exames, acompanhamento e recuperação, com proteção da Justiça.
Segundo os médicos, em no máximo 48 horas poderiam ser liberados para voltar para casa.
Uma vitória para Sebastian e mais um problema para Jhaver, que, por mais uma vez, desafiou um Deus Castigador.
A imprensa se esbalda com os fatos novos.
Enquanto alguns veículos preferem dar credibilidade a Alicia, que dissemina seu veneno contra Sebastian, estimulando as versões que o taxam de louco, assassino, maníaco, outros propagam que o promotor é a grande vítima dessa história.
Enquanto repórteres mais sérios apuram o caso com juristas, cientistas e religiosos, outros exploram a situação com depoimentos falsos, fotos chocantes e insinuações graves; como de que Celeste é amante de Sebastian; de que ele é o pai do filho de sua enteada e de que se afastou de forma premedita do Ministério Público para fundar uma nova religião.
Há publicações que trazem fotos do promotor com imagens distorcidas ao redor dele. As legendas chamam aquelas distorções de espíritos.
Um plantão televisivo entrevista um agricultor, que diz na noite passada uma bola de fogo cruzou o céu de sua propriedade e abriu um buraco no meio de sua plantação de trigo. Do buraco ele tirou o chicote que acredita ser de Jhaver. Embora se fizesse um esforço para provar o contrário, aquele utensílio mais parece um chicote comum usado na lida com gado.
Uma suposta imagem de Jhaver se espalha como vírus pela internet. Todos querem ver o rosto do anjo dos castigos.
Embora a opinião pública esteja dividida quanta a idoneidade de Sebastian e a existência do castigador, o país está unido em torno desse caso. Não só o país. Buenos Aires se tornou o centro do mundo.
E, segundo os livros sagrados, é no centro do mundo que está localizado o inferno.
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