Daniel Campos

Prosas

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10/11/2010 - A última noite

Se eu não me levantar da cama no horário de sempre, por favor, não me acorde não. Aliás, não faça qualquer movimento brusco senão aquele gerado por um beijo. Um beijo último. Não me venha com cobertas ou outras indumentárias. Não haverá mais tempo para sentir frio. Também não me traga copos d’água, remédios ou travesseiros. Se sede, dor ou caprichos surgirem pode ter certeza de que não serão mais de ordem física. Entretanto, mesmo se o meu coração não pulsar em sua mão, como de costume, saiba que o derradeiro pulso foi dedicado inteiramente ao amor maior que pode haver entre dois seres. ...
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09/11/2010 - Lições da natureza

Em todos os meus anos de sítio jamais vi duas galinhas chocarem os mesmos ovos, disputando acirradamente um único ninho. Ainda mais duas galinhas garnisé, bravas e espevitadas como elas só. Para minha surpresa, a cena, um tanto quanto improvável, aconteceu no quintal de casa. Aumentando o grau de improbabilidade, as galinhas escolheram o local da choca sem pensar em conforto, privacidade ou segurança. Mas elas quiseram assim, fazer o quê? Teriam que agüentar olhares, chuvas e companhias.
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08/11/2010 - Capítulo 58

A agitação só faz crescer nas proximidades da delegacia. Há pessoas querendo que Sebastian dê notícias sobre seus parentes mortos. Há doentes querendo simplesmente tocá-lo na esperança de alcançarem a cura. Há crentes querendo beijar-lhe os pés e há descrentes querendo apedrejá-lo. Independentemente dos desejos de santificá-lo ou demonizá-lo é unânime o pensamento de que um ser humano conseguiu um fato dos mais relevantes: que a existência de um Deus castigador fosse aberta e amplamente discutida. ...
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08/11/2010 - O uivo do coiote negro

O pio da coruja? O riso da hiena? O choro do sapo? Não! Nada é mais agourento do que o uivo do coiote negro. Um uivo doído capaz de doer à carne, os ossos e até mesmo a alma de quem o escuta. Um uivo inesperado e, ao mesmo tempo, esperado pelo temor que habita o nosso inconsciente. Rezam as lendas que a morte caminha com sua foice e horror sobre as ondas sonoras do uivo do coiote negro. Dizem que essa criatura foi mandada do inferno para agourar toda e qualquer criação divina. Portanto, qualquer filho de Deus pode ser vítima desse uivo. ...
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07/11/2010 - Saudadeira

Saudade é tudo aquilo que a gente não consegue disfarçar. É fardo pesado de se carregar. Saudade do que já foi geme doído igual carro de boi. Saudade não é passageira, é matadeira de sonho e dor. Saudade é um tempo perdido, jamais esquecido ou banido do coração. Saudade é a terra nua vazia de plantação. Saudade é o choro que cai sem avisar, é o peito apertado e a certeza de que toda tristeza do fado caminha ao lado por onde passar.

Saudade é espinho encravado, é a distância de um olhar cruzado, é o passado que não passa. Saudade abre buraco na vida da gente igual goteira de canto de cumeeira. Saudade é um sentimento sem eira nem beira que vai tropeçando nas nossas próprias pernas. Saudade é o pássaro que canta em busca do canto cantado ontem, anteontem, trasanteontem. Saudade é cavalo xucro pulando no pasto, impossível de domar. Saudade é nó de boiadeiro, difícil de desmanchar. ...
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06/11/2010 - Sonhos à venda

Quem quer vender um pouco de sonho quem quer vender? Estou aberto à negociação. Quanto custa seu sonho? Será que eu posso pagar? Você aceita fiado, vale refeição, um trocado? Quem quer vender um pouco de sonho quem quer vender? Estou disposto a sonhar seus sonhos, pode ser? Quer me dá-los de coração ou, parcelados no cartão ou será que preciso pechinchar para levar esses sonhos. Quem quer vender, quem quer?

Quem quer vender um sonho real ou de ficção, quem quer vender? Pode ser sonho grande ou compacto, breve ou eterno, possível ou impossível. Eu aceito sonhos de todas as medidas, todas as cores, todos os modelos. Quem quer vender um pouco de sonho quem quer vender? Vamos, façam suas ofertas. Vamos, porque eu tenho metas de levar um caminhão de sonhos pra casa até o fim do dia. Quem quer vender? Pode vender......
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05/11/2010 - Dia e noite, noite e dia

Dia e noite nada do que ele faz está excelente, ótimo, bom, tampouco satisfatório. Ele se esforça e, se dedica e se triplica, mas as críticas são uma constância em sua vida. E ele sabe que assim será até sua despedida. No entanto, não desiste, de ter esperança que um dia as coisas mudem. Mesmo que esse dia pareça tão distante, ele continua tentando buscar um sorriso, um aplauso, uma palavra de carinho para, ao menos, se iludir um pouco mais seguindo adiante.

Noite e dia ele caminha por entre olhares de condenação e reclamos. Como ele queria que fosse diferente. Não foi essa novela que ele sonhou para seus dias. Pelo amor de Eros, o que foi que deu errado? Silêncio. O fato é que as bocas se abrem e declaram-no culpado. Culpado por tudo e por todos. Como seria bom se acabassem logo com esse sofrimento e o pendurassem numa cruz, numa forca, numa estrela cadente. ...
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04/11/2010 - O tédio

O tédio corrói sem remédio os ossos do tempo. Tudo seca e, quebra e esfarela aos efeitos nocivos, corrosivos, incisivos do tédio. O tédio é o inimigo número 1 dos aventureiros, dos sonhadores e dos apaixonados. O tédio acaba com vidas pessoais, profissionais e sentimentais. O tédio é a falta de futuro, o fracasso do novo, a ausência de sonhos. O tédio é a continuidade do nada, é a vitória do nulo, é o fim da estrada. O tédio é o fantasma, o monstro, o câncer temporal e, até mesmo, atemporal. O tédio é qualquer coisa que enjoa e, que deixe à toa. O tédio é a pausa contínua que ecoa. O tédio é o fim antecipado. O tédio é o assédio da continuidade, a morte da saudade, o conformismo com toda e qualquer realidade. O tédio é a calamidade sem alarde, que chega na ponta dos pés e quando se percebe já ganhou a cidade. ...
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03/11/2010 - No mesmo amor

Desde que o mundo é mundo é assim, o amor se perde e se acha, o amor se quebra e se cola, o amor sorri e chora, o amor fica e passa, o amor afirma e nega, o amor cega e enxerga, o amor nasce e renasce, o amor dói e se dói, o amor caminha e descaminha, o amor amarra e desamarra, o amor enfeitiça e encanta, o amor atrai e espanta, o amor silencia e canta, o amor cai e levanta, o amor planta e colhe, o amor tolhe e acolhe no mesmo amor desde que o mundo é mundo.

Desde que o mundo é mundo é assim, o amor galga e cavalga, o amor adoece e cresce, o amor avacalha e ralha, o amor enobrece e empobrece, o amor caminha e aninha, o amor beija e deseja, o amor teme e treme, o amor enguiça e reboliça, o amor machuca e cura, o amor suporta e segura, o amor importa e bate à porta, o amor desaparece e se esquece, o amor noticia e extasia, o amor torna e entorna, o amor rompe e corrompe, o amor acode e explode no mesmo amor desde que o mundo é mundo. ...
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02/11/2010 - Os seus mortos

Chora por quem morreu, por quem se perdeu, por quem se esqueceu. Chora os mortos de carne e osso e os mortos de sonho e desejo. Chora por mortos conhecidos e também pelos desconhecidos, mas, sobretudo, chora pelos mortos que teve que enterrar. Neste dia dedicado aos mortos, faça uma lista de quantos sonhos você matou por necessidade e quantos sonhos você deixou morrer por omissão. Quantos futuros recém nascidos, já crescidos e até mesmo em fase de concepção morreram a partir de uma atitude sua? ...
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