Daniel Campos

Prosas

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14/03/2011 - Girassol sem sol

Como seria o girassol se ele perdesse seu amarelo? Será que continuaria sendo girassol? Será que continuaria girando em torno do sol? Certamente, teria outro nome e função bem menos poética. Se ficar branco ainda poderá ser giralua. Mas e se virar um descolorido só ou um borrão de nanquim? Girará em lembranças do que um dia o foi. Até mesmo os pássaros que se alimentam de suas sementes hão de perder o apetite.

Pois bem, é bom se acostumar com essa realidade. Pois “vaso com 12 girassóis”, uma das obras mais famosas de van Gogh está perdendo a cor. O amarelo cromo se transformará em amarelo ocre e depois em marrom. Girassóis marrons não existem. Essa aberração artística é culpa do tempo que ao passar promove um sem número de variações químicas. Especialistas tentam encontrar uma solução, um remédio, uma saída, mas van Gogh morreu e com ele vai morrendo o amarelo cromo. ...
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13/03/2011 - Estação das ameixas

Seus olhos são como ameixas negras, que mesmo negras são vermelhas, rubras, magentas. Olhos suculentos, lágrimas de um sangue açucarado. Prazer dos sedentos. Olhos de ameixas, queixas da estação, paixão aristocrática. Olhos lisos, aparentemente homogêneos, porém, formados por centenas, milhares, milhões de pontos luminosos. Olhos de casca fina e polpa macia; desejáveis a olhos e bocas alheias.

Olhos de ameixas, madeixas de frutas; deixas de cicuta. Olhos maduros mesmo novos, doces mesmo azedos, silvestres mesmo civilizados. Olhos de ameixas nas ameixeiras, nas prateleiras, nas bandejas, nos pratos, nas quitandas, nas gargantas e nas entranhas. Olhos de ameixas sendo lambidos, mordidos, decorados, engolidos, digeridos, incorporados a outros olhos, olhares, lugares de óleos e holísticos. ...
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12/03/2011 - Bocejos lunares

Boceja a lua recostada no pé direito de uma casa de esquina. Tem desejos de mulher e olhar de menina aquela criatura curvilínea, redondamente atraente. Não tem medo de descer do céu para amar no meio da rua, feito o casal de namorados que beija com sabor de pipoca. Tomou coragem e tatuou um livro inteiro de Garcia Marques em uma de suas crateras e se pôs a espera de alguém que pedisse sua mão (e um pouco mais) para São Jorge.

Como queria deitar numa cama e ser acordada só na noite seguinte não importando se estrelas ou cometas questionassem sua ausência longa e súbita. Fria como a brisa que caminha pela madrugada queria se embrulhar em lençóis, beber uma bebida quente e dormir de conchinha. Queria ser chamada de “minha” no meio de um eclipse. Queria dançar com meteoritos de carne em passos de elipse. ...
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11/03/2011 - Da janela

Da janela eu vejo a favela e seus barracos multicoloridos se abraçando, se misturando, se acasalando no clarão do sol na escuridão da lua que anda torta no céu feito anzol. Da janela eu ouço polícia e bandido trocando tiros, um menino empinando pipa com cerol, uma mulher gritando, uma criança chorando e um violino conversando em si bemol. Da janela eu torço por aquela cesta de basquetebol no fim do jogo e pelo final feliz da fotonovela com olhos entre a insônia e o rupinol.

Da janela eu a vejo, ela, a jogadora de handebol, toda bela, enrolada no lençol, iluminada por uma arandela. Da janela eu sinto seu hálito de mentol com canela se perdendo entre as nuvens de um anjo sentinela. Da janela eu ouço o ar, cântico de rouxinol, se movimentado debaixo de suas costelas. Da janela eu grito: cuidado com o farol, com o colesterol, com a esparrela. Da janela eu a tenho como uma tela de aquarela retratando o mergulho do girassol no atol. ...
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10/03/2011 - O bem de um romance

Para quem vive sob pressão e enfrenta constantes bloqueios físicos e inspirativos em seu dia a dia, nada melhor do que se aventurar por um novo romance. Um livro inédito, com personagens convidativos à descoberta, é capaz de operar milagres em organismos em crise. Cada página deve ser lida com profunda ousadia e com um leve temor. Ousadia no quesito envolvimento, isto é, o quanto você se doa à história. Já o temor, em doses sutis, se refere à sensação de se perder da realidade, que deve estar sempre presente, mantendo vivo seu elo com o cotidiano....
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09/03/2011 - A velha do cinzeiro

Eulália, moça magra e de muito desembesto, carrega a filha no colo pisando largo num caminho de pedregulhos cercado por espadas de São Jorge e de Nossa Senhora. Essa última, ao contrário da outra, tem uma moldura amarela. A pequena Talita, que nasceu amorenada, tava pálida, meio esverdeada de dor, de quebranto, de susto. Falavam que ela sofria de bucho virado, de olho gordo, de mau jeito. A mãe não acreditava nessas coisas, mas de tanto ouvir conversa alheia, acabou por amarrar uma fitinha vermelha no braço da menina e alfinetar uma medalhinha de São José na roupa da pequena. Se o problema não tivesse tão adiantado essas medidas podiam ter resolvido a questão. Mas... A menina chorava sem parar, posição alguma estava boa o suficiente. Chorava de perder o fôlego. Tava inquieta, ranheta, mole e quente. A febre não cessava com compressas e antitérmicos. Deixou de lado as bonecas, os iogurtes preferidos e uma manta com cheirinho de morango que ganhou de um tia. Veio junto com um urso cor de rosa que dormia junto dela no berço. ...
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08/03/2011 - Gaia e suas mulheres

Todo artista tem em sua alma uma espécie de útero. Foi assim que essa fonte de energia chamada Deus deu a luz ao mundo. A humanidade chegou aonde chegou por conta do pecado original, envolvendo duas simbologias femininas: a maçã e a serpente. Temos em nossas veias o sangue de Eva. Jesus só foi Cristo graças ao milagre de Maria, Nossa Senhora, que é una e ao mesmo tempo centenas de invocações e rostos.

A civilização perdeu a cabeça com Joana D’Arc. Imperadores e escravos da paixão viraram pedra diante dos olhos de Cleópatra. Os amantes passaram a amar em francês com Edith Piaf. Os deuses do Olímpo se destruíram pela beleza de Afrodite. Quantos homens se curvaram a uma Margaret de ferro? Quantos não sonharam em dançar com Margot Fontain? Quantos corações foram revirados pelos gestos de madre Tereza de Calcutá? Quantos os órfãos da princesa Diana, de Evita Perón, de Elis Regina?...
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07/03/2011 - Lança perfume

A mulher amada, dentro ou fora do carnaval, nos blocos ou nos bailes, nas ruas ou na cama, no sonho ou na realidade, na folia ou na tristeza, lança perfume. Seja nos momentos de conquista, de lazer, de trabalho ou de reflexão, a mulher amada lança perfume de forma sutil ou avassaladora.

Dos poros da mulher amada emanam naturalmente fragrâncias relacionadas ao sentimento. Cheiro de amor, cheiro de raiva, cheiro de angústia, cheiro de saudade, cheiro de desejo, cheiro de diversão. Porém, em instantes de pura intensidade, a mulher amada não apenas emana, mas lança perfume. ...
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06/03/2011 - Foliões deste e de outros mundos

Reza uma lenda que no carnaval os espíritos mais mundanos ganham permissão para sair do inferno. Na prática, é isso mesmo o que ocorre. Nesses dias de festa uma multidão de espíritos inferiores ganha às ruas ao lado de foliões encarnados. E não é deus ou o diabo quem concede essa alforria, mas a própria humanidade. O intercâmbio vibratório, feito a partir dos pensamentos de quem cai na folia, permite essa invasão umbralina. Graças à afinidade os espíritos das trevas se unem aos sambistas de plantão dando um tom de tragédia ao carnaval. ...
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05/03/2011 - Dias de carne

Carnaval vem de carne e prazer. Durante a idade média, os dias de carnaval eram dias de prazer, de comer carne à vontade, já que na quaresma é preciso se abster dessa iguaria. No entanto, esses dias também são de muita carne humana. O corpo humano torna-se uma espécie de produto à venda, um objeto de desejo, um pedaço suculento de carne. É como se olhos, olfato, ouvidos e tato se rendesse ao paladar numa imensa e intensa antropofagia. E isso não é enredo de escola de samba.

Carne branca, preta, mulata. Carne louca. Carne nua. Carne de primeira, de segunda e até de quinta. Carne salgada e doce. Carne na cerveja, na cachaça, no vinho. Carne suada. Carne sangrando. Carne malpassada e ao ponto. Carne a la carte. Carne de boca em boca, de mão em mão. Carne de engorda. Carne seca. Carne nacional e estrangeira. Carne roubada. Carne proibida. Carne crua e temperada. Carne gordurosa. Carne em chamas. Carne no prato, na rua, na cama. Quartos de carne no quarto. ...
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