09/03/2011 - A velha do cinzeiro
Eulália, moça magra e de muito desembesto, carrega a filha no colo pisando largo num caminho de pedregulhos cercado por espadas de São Jorge e de Nossa Senhora. Essa última, ao contrário da outra, tem uma moldura amarela. A pequena Talita, que nasceu amorenada, tava pálida, meio esverdeada de dor, de quebranto, de susto. Falavam que ela sofria de bucho virado, de olho gordo, de mau jeito. A mãe não acreditava nessas coisas, mas de tanto ouvir conversa alheia, acabou por amarrar uma fitinha vermelha no braço da menina e alfinetar uma medalhinha de São José na roupa da pequena. Se o problema não tivesse tão adiantado essas medidas podiam ter resolvido a questão. Mas... A menina chorava sem parar, posição alguma estava boa o suficiente. Chorava de perder o fôlego. Tava inquieta, ranheta, mole e quente. A febre não cessava com compressas e antitérmicos. Deixou de lado as bonecas, os iogurtes preferidos e uma manta com cheirinho de morango que ganhou de um tia. Veio junto com um urso cor de rosa que dormia junto dela no berço.
Tinha tentado pediatras, passeio no parquinho e até um brinquedo novo, daquele que passam nos reclames da televisão. Porém, nada trouxe de volta o ânimo de uma menina que até pouco tempo esbanjava saúde e disposição. Resolveu então deixar de orgulho e aceitar o conselho de sua empregada doméstica. Iria procurar a velha do cinzeiro, mas o marido, que tinha colocação numa dessas igrejas evangélicas, não poderia saber de nada. A velha do cinzeiro na verdade era Nair Tordesilhas. Carregava no sobrenome o tratado que dividia o mundo entre espanhóis e portugueses. Ela não era nem uma coisa nem outra - descendia diretamente de garrafeiros e bruxas. Tanto que era personagem de muitas historias de assombração. Morava numa casinha de meia água, no fim de uma rua sem asfalto, sem luz, sem ônibus. Vivia da aposentadoria. Maridos e filhos se distanciaram por direções diferentes. Não dava o braço a torcer, mas o peso da solidão pesava sobre seus oitenta e dois anos.
Mas voltemos a Eulália, que caminha pelando de medo e receio pelos pedregulhos cercados de espadas santas. A casa de Nair não tem interfone, campainha, sineta... mas também não tem portão. Por isso, vai entrando. A velha está dentro de casa, no rabo do fogão de lenha. Embora essas coisas não se explique, Nair sabia da visita. Tanto que acendeu o fogo. E o motivo de queimar lenha não era um café fresco ou uma caneca de chá de alguma das muitas ervas que se esparramavam pelo seu quintal que corria até um córrego. Sem dizer muita coisa – a solidão acabou comendo sua língua – fez um gesto pra mãe segurar a menina numa certa altura e posição. Com ajuda de um graveto, revirou as brasas e juntou e arrastou um pouco de cinza pra palma de sua mão. Derramou sobre ela um pouco de óleo curado e sussurrando algumas palavras estranhas fez três cruzes de cinza no corpo de Talita. Uma na testa, uma na boca e outra no peito.
Conforme fazia o ritual o fogo no fogão a lenha estralava e se alvoroçava. Eram os espíritos ruins sendo queimados, voltando para o inferno. Acreditando ou não nisso, o fato é que por alguma espécie de milagre, a febre, o enjôo e a dor de Talita que ardiam como brasa transformaram-se em cinzas. Dona Nair perdeu a conta de quantas benzeduras já fez. As palmas de sua mão, queimadas pela cinza, tiveram suas linhas apagadas. Não se sabia onde terminava a linha da vida e começava a da morte. Por isso, rezava a lenda que a velha do cinzeiro não morria de forma alguma. Era imortal. Mas isso já era demais para Eulália, que se embaralha com as palavras de agradecimento e aperta o passo rumo ao portão. Só se esquece que não há portão e que não conseguiria se livrar da velha de forma tão fácil. Quanto mais tentava esquecê-la, mais as cruzes de cinza de Talita pareciam tatuar sua alma.
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