Daniel Campos

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18/03/2011 - Capítulo 65

Tudo tem um propósito

A cena de dona Valentina e Malena de mãos dadas no sofá do hospital é forte por si só. Embora possa assustar por sua intensidade, inspira segurança e conforto. Elas mantêm os olhos fechados e as mãos entrelaçadas. Dali mesmo as duas enviam fluidos para a sala de parto. Sebastian toma um café na cantina da maternidade enquanto procura se concentrar e rezar. Ao contrário de outros tempos não foca sua reza em Miguel.

Eleva preces para espíritos iluminados. Busca contato com Jhaver e outros seres de luz que conheceu. Mas a inquietude que o perturba nas últimas semanas quebra seus pensamentos. Micaela está na sala de parto há mais de duas horas. Desde o início das contrações ao rompimento da bolsa nada fugiu ao normal. Todos estavam em casa, afinal, era fim de madrugada. A maleta com as coisas necessárias para o hospital já estava devidamente pronta.

Nessa hora as mulheres são mais calmas. Sebastian ficou aflito, passou dois sinais vermelhos, errou a entrada do hospital, falou alto no balcão de informações. Micaela pedia para que ele se acalmasse, pois estava tudo bem. Só que algo, dentro dele, dizia o contrário. Talvez fosse só uma má-impressão recorrente da perda recente de seu filho. Talvez ainda estivesse encabulado com o silêncio dos umbralinos. Tudo estava muito quieto.

O fato é que o final feliz esboçado com o resultado do julgamento não se efetivou por completo. Algo afligia Sebastian, que tinha para si que a guerra ainda não havia acabado. É como se estivesse faltando algo que nem ele pudesse explicar o que. Embora sua fé tenha se desenvolvido muito, ainda estava sujeito a fraquezas e medos. Normal para quem está encarnado.

Ali mesmo, no saguão do hospital, pegou o telefone e fez uma, duas, três ligações. Esforçou-se para que o pai da criança estivesse ali, mas não teve êxito. Ele parecia não querer saber do filho de forma alguma. E Micaela, por mais que negasse, chorava por isso. Chorava por dentro. Não foi isso que sonhou pra sua vida.

Mas essa situação toda a acabou levando a um amadurecimento intensivo. Não era mais a mesma menina revoltada e mimada de semanas, meses e anos atrás. Transformou-se em uma mulher séria, responsável e preocupada com o futuro.

Malena também se preocupava, mas não deixava transparecer. Firme, dava toda motivação para a filha. Estava sempre junto, ajudando e conversando com ela em todos os momentos. Reassumiu o controle da rede de joalherias corrigindo a administração inconseqüente de Alicia, mas passou a dedicar mais de seu tempo aos filhos.

Valentina, com a paciência de sempre, pedia que deixassem a situação desenrolar por si só. A ausência do pai da criança podia fazer parte dos planos divinos. Afinal, segundo ela sempre reforçava, Deus não dá a seus filhos um peso maior do que eles podem suportar e carregar. Tudo tem um propósito que deve ser respeitado mesmo quando não compreendido.

Quisera Sebastian ter a confiança da sogra, que parecia não temer absolutamente nada. Nem mesmo um câncer que começou a dar sinais de existência em seu estômago. Ainda não contou para ninguém, mas já sabia o que lhe esperava. Podia ser visto como uma simples doença, normal na velhice; como um castigo por ter se rebelado e ficado do lado de Jhaver; ou simplesmente como uma desculpa para a chegada da morte.

Sebastian parecia pressentir essas coisas e dar asas a sua inquietação. No hospital, só ficou mais sossegado quando ela foi levada por uma enfermeira que estava acompanhada de Klaus. Não se sabe como, mas ele viu e reconheceu o espírito amigo. E não era só ele quem estava ali. Havia espíritos especialistas em auxiliar nascimentos.

No quarto, esses espíritos emanam tranqüilidade e harmonia a quem dá e a quem recebe a luz. Além de fazer bem para a mãe, trazem confiança ao espírito reencarnante, que, ao nascer, inicia uma nova etapa em sua jornada evolutiva.

Essa ajuda é necessária porque no momento de encarnar o espírito sofre desarranjo semelhante ao que experimenta ao desencarnar. No processo de reencarnação o espírito troca o mundo dos espíritos pelo mundo corporal. Tem consciência de que vai reencarnar. Por isso, está sujeito a sentir agonia, medo e ansiedade. Por isso, precisa passar por um período de preparação que varia de caso a caso.

Por mais absurdo que possa parecer, Sebastian sente as inseguranças e aflições de um espírito que está prestes a reencarnar. Sofre com isso. Pode ser só o envolvimento com a história do parto de Micaela, que uniu a família, mas tinha para ele que era muito mais do que isso. Era como se, de fato, ele, ou parte dele, fosse reencarnar.

Os auxiliadores do parto vão filtrando as energias, limpando o ambiente para a chegada do reencarnante. O espírito que chega é como um navegante que embarca para uma travessia desconhecida, cheia de perigos e desafios. Sabe que precisa ir, sabe muito do que vai encontrar, só não sabe como vai passar pela nova experiência.

No instante do nascimento, o espírito reencarnado toma, em definitivo, posse do corpo unindo-se a ele por meio dos seus cordões fluídicos. A ligação da alma com o corpo, que teve início antes mesmo do momento da concepção, por meio da ligação fluídica da mãe com o espírito do filho, se concretiza no parto com a ligação de cordões vitais, como o do cérebro e o do coração.

O rosto de Micaela está banhado de suor e lágrimas. O choro de Pablo, que vem à luz pela mão de um médico que tem sua mão amparada por um espírito, se mistura ao choro da mãe. Embora ela não pudesse ver, Klaus e outros seres de luz sorriem e saúdam o início de um novo ciclo, abençoando aquela criança.

Minutos depois, ao estarem diante do neto, Malena e Sebastian se emocionam e sentem uma ligação bastante forte com o bebê. É como se eles já o conhecessem, convivido com ele de algum modo.

Dona Valentina, que foi avisada do espírito que reencarnaria naquele corpo, respira aliviada. Pois sabia que aquela era uma nova chance para aquela criança e para toda a família.

Aquele espírito retorna a Terra pela terceira vez em pouco tempo. Tem uma missão interrompida para cumprir. Da primeira vez, um carro tirou sua vida ainda menino diante dos olhos de Malena. Da segunda, foi enterrado natimorto pelas mãos de Sebastian. Das duas vezes seu destino foi quebrado.

Não vale a pena questionar se essas quebras se deram por ação de espíritos de luz ou sombras. Basta estar consciente de que esses acontecimentos foram necessários para que determinadas pessoas evoluíssem a partir dos vários níveis do sofrimento da perda.

Diego está de volta, trazendo consigo uma semente do passado. De volta, desta vez, pelo ventre daquela que um dia já foi sua irmã.

Quem também está de volta é Sebastian ao Ministério Público. Só que por pouco tempo. Aliás, pouquíssimo tempo. Depois de ser inocentando, ele participa do rito que lhe restitui ao cargo, mas logo em seguida renuncia à carreira de promotor, num discurso sereno e objetivo:

- Uma das principais razões que me levaram à promotoria foi à possibilidade de fazer justiça. Vivi uma rica experiência no Ministério Público. Uma experiência que me levou a um aprendizado intenso. Para continuar fazendo justiça chegou o momento de sair da promotoria, de buscar o lado inverso – o lado da defesa. A minha vida profissional ainda está incerta, mas estou com muita vontade de defender aqueles que não têm como se defender. Não sei como vou fazer isso, mas preciso ser honesto comigo, com o Estado e com a população. Não poderia continuar num cargo apenas por prestígio e dinheiro. Preciso de mais. Preciso de um sentido que alimente a minha inquietude, de um norte que me guie, de uma motivação que me faça viver por inteiro o que estou fazendo. Vivi intensamente a promotoria nesses dez anos. Chegou o momento de mudar de rumo para continuar no rumo certo. Por isso, renuncio ao meu cargo.

Depois de muitas reflexões, Sebastian não quer mais continuar como promotor. Não faz sentido continuar agindo como uma espécie de castigador.

A renúncia surpreende a mídia, Malena e, até mesmo, ele. O gesto é um reflexo concreto da transformação por qual passou. Uma transformação intensa e rápida, que traz resultados espantosos.

Para si próprio e para os outros, justifica de que só assim poderá apaziguar a angústia que vem sentindo. Pensou em prestar concurso para defensor público, já que tomou gosto pela carreira pública. Mas precisa de tempo para se dedicar a sua nova missão. Não pode se prender a um emprego que lhe exigirá horários e dedicação em nada flexíveis.

A idéia, em médio prazo, é montar um escritório de advocacia que cumpra um trabalho social. Por hora, planejou colocar seus serviços de advogado à disposição no Centro Espírita Sementes de Luz. Atenderia em uma salinha quase todas as tardes, conciliando essa atividade com outros compromissos assumidos. Mas não teve tempo pra colocar isso em prática.

Embora dona Valentina continue no comando do centro, Malena e Sebastian ganharam atribuições. Depois dessa história toda de Jhaver, o local recebe diariamente uma multidão de pessoas. Anônimos e celebridades, leigos e espíritas, argentinos e estrangeiros rumam para o endereço e acampam na porta em busca de respostas, de milagres, de contatos espirituais. Há triagem e distribuição de senhas. A equipe se esforça para atender o maior número de visitantes.

O entendimento foi de não transformar em show a relação de Jhaver com Sebastian, Malena e Valentina. As atividades do centro – reuniões, estudos da doutrina espírita, evangelização de crianças, trabalhos assistenciais e mediúnicos, como passe, desobsessão e cura – continuariam as mesmas. Tudo só seria redimensionado para se adequar à quantidade de pessoas e à experiência enriquecedora com o anjo negro.

Convites para entrevistas, palestras, presença em sessões espíritas não faltam para Sebastian, que havia ganhado fama no mundo todo. Garantindo investimentos às obras assistenciais promovidas pelo centro, fechou contrato com uma grande editora para publicar o livro, e com revistas e jornais argentinos e internacionais para publicação periódica de artigos.

Precisava levar a experiência de Jhaver aos quatro cantos do planeta como uma espécie de evangelista. Essa era a missão maior que precisava abraçar.

Porém, antes de qualquer coisa, precisa terminar de escrever O Castigador. Os últimos capítulos estão difíceis de ganhar o papel. Falta inspiração. Nunca mais falou com Jhaver, tampouco o sentiu por perto. Parece que ele sumiu. Talvez o abandonasse depois do julgamento. Será que foi punido? Será que ainda existe? Será que voltou a ser um castigador?

A falta de notícia lhe deixa preocupado. Nem Valentina nem Malena nem médium ou espírito algum lhe dá informações sobre o paradeiro de Jhaver. Parece ter sido varrido do plano superior.

Esforça-se toda noite, mas nem mesmo nos sonhos o encontra. Será que o anjo negro não pode ou não quer ser encontrado?

Logo após Pablo ser batizado, ao completar um mês, Sebatian e Malena, os padrinhos, embarcam para Bariloche.

Depois de todo esse período de instabilidade e tensão, viajam em busca de paz e descanso. Praticamente uma nova lua de mel para colocar em ordem um casamento bastante tumultuado. Era para viverem dias aprazíveis, de calmaria. Porém, a angústia de Sebastian não alivia nem mesmo diante daquelas paisagens de perder o fôlego.

Em um de tantos passeios, Malena tem um pressentimento para não andar no teleférico localizado no Complexo Cerro Otto. Sebastian também sentiu alguma coisa. Mas o que sentiu teve o efeito contrário. Uma força o empurrava para a viagem de pouco mais de dois quilômetros sustentada por cabos de aço.

A vontade da mulher prevaleceu. Voltaram para o hotel. Malena teve um sono estranho e algo fez o ex-promotor sair às ruas, sozinho, e voltar ao complexo.

O céu estava limpo, mas o ar estava pesado. Embarcou numa daquelas gôndolas panorâmicas rumo ao cume do Cerro, a mais de 1400 m de altura. Junto dele, outros três passageiros.

Do nada, pouco depois da metade do percurso, o horizonte foi manchado por borrões negros. Tempestade de raios e ventos. A chuva era apenas conseqüência de um grande transtorno atmosférico. As gôndolas chacoalhavam a metros e metros de altura. Sebastian não sabia se aquilo era real ou se não passava de uma alucinação, afinal, os outros passageiros não esboçavam quaisquer sinais de espanto.

Os cabos, cada vez mais tensionados pela ventania, pareciam querer se romper e chicotear o corpo da montanha. Gritos ecoavam dentro de Sebastian enquanto de sua boca saía um silêncio arrebatador. Fechou os olhos e rezou deixando sua vida nas mãos dos espíritos.

De repente, a chuva passou, o céu voltou a se abrir. No meio daquela confusão toda que durou menos de três minutos, Sebastian sentiu Jhaver. Abriu os olhos e enxergou o ex-castigador no rosto daquelas três pessoas que estavam ali. Um negro, um louro e uma mulher de cabelos acastanhados.

Todos eram bem diferentes fisicamente, mas todos eram Jhaver.

Não falou nada, tampouco ouviu palavra alguma.

Mesmo com essa experiência o livro não avançou uma página sequer. Em compensação, Malena desenhou uma nova linha de jóias assim que acordou daquele sono misterioso.

A estada em Bariloche chega ao fim e o casal volta a Bueno Aires. O dia do lançamento da obra “O Castigador” estava próximo. Aliás, estava próximo demais.


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