Daniel Campos

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Encontrados 278 textos. Exibindo página 22 de 28.

06/12/2009 - O assovio e o vento

Depois de muitos anos o vento voltou a assoviar em meus ouvidos. Um assovio que mais se assemelha ao uivo dos lombos. Assovio que medra as crianças que urinam na roupa, os cães que se escondem e os velhos que se põem a rezar. Pelos campos de selva e pedra, o assovio chega a cortar feito lâmina imaterial. Vento ultra-sônico. Vento folclórico. Vento arteiro que gosta de assustar. Vento de ventanias e outras estripulias. Vento de assovios que correm como rios em noite de tempestade.

O vento assovia como um anúncio maléfico, como um prenúncio de final dos tempos. Que venham as cavalarias. Que venham santos e arcanjos com suas armaduras prontos a desafiar os demônios de plantão. É isso que o vento nos faz pensar ao assoviar feito um louco pelas ruas tortas do vale das sombras. O assovio arrepia, dá calafrios e um tremor na espinha. O que, depois de tantos anos, o vento quer comigo? Será que quer me pedir ou me cobrar alguma coisa?...
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26/11/2009 - O embaixador Marcus Vinitius Cruz e Mello Moraes

Vinícius de Moraes foi promovido a embaixador. Uma promoção póstuma que renderá pensão de 10 mil reais aos herdeiros daquele que encontrou palavras para o balançado da garota de ipanema. O diplomata que foi expulso do Itamaray há quarenta anos, durante a ditadura militar, finalmente deu a volta por cima no mundo das relações exteriores. Já que a onda é fazer Justiça, os acadêmicos poderiam promover Vinícius de poetinha à poeta. Afinal, o diminutivo, além de um tratamento carinhoso, é utilizado para depreciar aquele que uniu a forma erúdita da poesia ao sentimento popular. ...
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25/11/2009 - O caçador de nuvens

João, o caçador de nuvens. Era assim que gostava de ser chamado. Corria de lá pra cá, de frente pra trás, de cima abaixo buscando nuvens. Gostava desde as transparentes até as negras, fartas de água. Vivia observando as movimentações, os contornos e preenchimentos desses conjuntos de partículas suspensas. Adorava dias nublados. Vibrava quando uma nuvem conseguia cobrir sol ou lua. Torcia pelas nuvens como quem torce por um time de futebol.

Se não bastasse essa estranha paixão, dava munição à boca do povo ao sair de casa com uma cestinha daquelas de apanhar borboletas. Gritava pelas ruas que estava aberta a temporada de caça às nuvens. Enquanto seus amigos se dedicavam à pescaria, João sonhava em cavalgar em uma nuvem. Subia em árvores, em montanhas, em edifícios tentando realizar o sonho. Mas sabia que o único jeito de encontrá-las era pegar um avião. Faltava-lhe apenas dinheiro pra viabilizar a aventura. ...
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30/10/2009 - Outubro rosa

Alguns meses têm cores próprias. Dezembro, incorporando o Natal, combina verde e vermelho. Janeiro veste branco, como as oferendas de Iemanjá e as promessas de paz. Julho é acinzentado por conta do inverno e setembro, colorido por conta da primavera. Já outubro é rosa. Rosa? Neste mês que está prestes a se esvair pelos meandros de novembro o Cristo Redentor e as famosas lojas paulistas da Oscar Freire foram iluminadas de rosa. Aliás, monumentos foram iluminados de rosa em várias partes do mundo. ...
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26/10/2009 - Os mantenedores da guerra

Um tiro não faz a guerra, mas mata uma dúzia de sonhos de um sonhador. Uma arma de fogo não faz a guerra, precisa de mãos para segurá-la, com gana e destreza, como um punhal. Uma bala de revolver sem segundas intenções é tão inofensiva quão uma bala de hortelã. Até mesmo para ser expulso do paraíso alguém teve que empunhar uma maçã. As armas são a extensão do corpo do próprio homem. É seu desejo interior que mira, que atira e tira a vida alheia. É ele quem tece e cai na própria teia.

Quem é que está empunhando essas armas? Qual a razão desse carma de matar e se matar? Que exército é esse que se levanta? De onde vem essa força tanta? De onde vem essa mão que se agiganta no gatilho? Mãos de pai, mãe e filho? Que exército é esse que não tem nome? Mata, some e remata... Pra onde vai essa violência que maltrata a gente? Será que dá cria ou nasce de semente? Será que é natural ou um acidente genético, cultural, trans-espacial? ...
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20/10/2009 - O presidente, o horário e o verão

Presidente, eu não sei se o senhor reparou, mas a última segunda-feira foi um dos piores dias de crise de todo o ano. Crise de sono. A força da preguiça superou em muito a força de trabalho da nossa gente. Houve uma tremenda invasão de olheiras pelas ruas. Muita gente acordou atrasada, saiu de casa sem tomar café numa correria danada, aumentando o índice de famintos e o número de acidentes de trânsito. Pudera, o relógio é impiedoso. O primeiro dia útil do horário de verão foi caótico. E pior, nem é verão. É primavera. É primavera com chuva de inverno e vento de outono. ...
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12/10/2009 - O dia mudou

Dia de Nossa Senhora Aparecida era um dia literalmente sagrado na minha pequena Mogi-Mirim de vinte anos atrás. Eu contava os minutos para os ponteiros do relógio se encontravam em cima do número 12. Era ao meio dia que uma salva de rojões cobria os bairros de ruas estreitas que, naquela data, se enchiam de cavaleiros que iam visitar uma imagem em uma fazenda. Ao som dos fogos, os cachorros corriam para debaixo das camas. Eram mais de dez minutos de barulho intenso. Meu pai soltava rojões no quintal com o auxílio de um cabo de vassoura. Já meu avô os colocava nas lanças da grade que cercavam a frente de sua casa. ...
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11/10/2009 - O destino dá voltas

Mesmo a contragosto, ela saiu pelas ruas levando apenas um pouco de si na bolsa. Queria ter uma bagagem maior, mas o tempo lhe tirou esse prazer. E foi assim, mais leve do que pretendia sair, que saiu pelas ruas da solidão. Adepta de barras de cereal e de um mundo natural, ela não tinha sequer um pedaço de pão para marcar seu caminho. Além dos cereais e de uma maçã, trazia uma lixa de unha, uma folha de jornal, um perfume, um espelho, uma caixinha de maquiagem, um envelope de remédio pra dor de cabeça e um batom. Eram esses seus acessórios para escalar o Everest, para atravessar o Atacama, para chegar ao centro da Terra....
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31/12/2008 - O que fica pelo caminho

Quantos versos, quantas linhas, quantas declarações de amor vão ficar para trás. Quantos beijos, molhados e doces, vão ficar para trás. Quantos sonhos, caídos pelo caminho, vão ficar para trás. Quantos rostos, a se perder pelos dias, vão ficar para trás. Quantos tijolos empilhados, quantas cartas encasteladas, quantas pedras do dominó enfileirado que é a vida vão ficar para trás. Quantos sorrisos, soluços, choros e prantos vão ficar para trás. Quantos vôos voados ou não vão ficar para trás.
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23/12/2008 - O grito de Van Gogh

Há cento e vinte anos, Vincent Van Gogh, um dos pintores mais aclamados de todos os tempos, cortava parte da sua orelha esquerda. Loucura? Depressão? Arte? Há quem corte os pulsos, quem corte o pescoço, quem corte as genitálias, mas cortar a orelha? O que será que passou na cabeça do pós-impressionista? Se quisesse se matar, o pintor holandês certamente daria uma outra direção à lâmina. Talvez quisesse se castigar ou provar que poderia ir além de qualquer limite.

Não conseguiu ter família. Não conseguiu se sustentar. Não conseguiu ter amigos. Não conseguiu ver o sucesso de suas obras. Era como se em seu mundo, só houvesse ele de habitante. E nessa solidão, a orelha, que ouvia desaforos, o incomodava. Então, era melhor cortá-la. Mais de um século depois deste ato que mitifica ainda mais o seu universo, pense se dá ou não uma vontade de cortar as orelhas depois de ouvir as barbaridades políticas, econômicas, sociais e culturais a quais estamos expostos. ...
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