Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
12/10/2009 - O dia mudou

Dia de Nossa Senhora Aparecida era um dia literalmente sagrado na minha pequena Mogi-Mirim de vinte anos atrás. Eu contava os minutos para os ponteiros do relógio se encontravam em cima do número 12. Era ao meio dia que uma salva de rojões cobria os bairros de ruas estreitas que, naquela data, se enchiam de cavaleiros que iam visitar uma imagem em uma fazenda. Ao som dos fogos, os cachorros corriam para debaixo das camas. Eram mais de dez minutos de barulho intenso. Meu pai soltava rojões no quintal com o auxílio de um cabo de vassoura. Já meu avô os colocava nas lanças da grade que cercavam a frente de sua casa.

Ao riscar do fósforo, tampávamos os ouvidos e abríamos um sorriso diante daquela louvação. Um cheiro de pólvora infestava o ar, despertando sentimentos estranhos. Embora ensurdecesse, o barulho daqueles estouros alvoroçava a fé. Ao meio dia, minha avó rezava um terço e nós íamos todos à frente da imagem no intuito de venerar aquela Nossa Senhora negra, que vestia um manto azul e levava uma coroa vermelha na cabeça. A imagem que tínhamos em casa era antiga, ficava em um móvel escuro na sala de jantar. Foi comprada na feira de Aparecida antes mesmo de eu nascer.

Ano após ano, os rojões foram diminuindo nessa data. O encanto foi se perdendo. Por mais que meu pai atendesse ao meu pedido e aumentasse o número de rojões, o tempo de ficar sob fogos era bem mais tímido. Quando passei o meu primeiro dia 12 de outubro fora de Mogi-Mirim, assustei-me. Faltando poucos minutos para o meio dia, sai na varanda do meu apartamento em Brasília e não escutei um só rojão. Um silêncio total, como se eu tivesse errado de data. O único barulho era o de crianças brincando de bola perto dali.

Demorou um pouco para eu entender que o Dia de Nossa Senhora Aparecida havia, pouco a pouco, se tornado o Dia das Crianças. Os rojões, os terços do meio-dia, os cavaleiros e as procissões que minha avó fazia questão de acompanhar deram lugar a um dia dedicado aos pequenos, que ganham presentes, que vão ao parque, que, enfim, tem muitos outros motivos para se encantar do que ficar em silêncio em frente a imagem de uma senhora vestida de azul. Uma imagem que não fala quando apertam sua barriga, que não dança remexendo braços e pernas, que não se ilumina em uma seqüência de cores, que não dá cambalhota, tampouco é de pelúcia.

Assim como o Natal, o dia 12 de outubro conseguiu se tornar uma data comercial. E a estratégia foi boa: Nossa Senhora adora crianças e vive rodeada delas, então para presentear a mãe de Deus basta comprar um presente para uma criança. Discursos à parte, os tempos mudaram. O que eu sei é que tenho saudade daquele tempo em que o céu era alvejado por rojões. Ao menos, daquela forma, não só homenageávamos Nossa Senhora, mas chamávamos sua atenção para a nossa pobre realidade. Uma forma, meio caipira, de não ser esquecido.


Comentários

13/10/2011, por Erasmo:

É meu caro, infelismente nós vemos a secularização de tudo que é sagrado. Tudo que nos leva a presença de Deus, logo aparece alguem com uma bom discurso pra dizer que não vale a pena.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar