Daniel Campos

Prosas

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22/09/2016 - Breves apontamentos para sempre

Não procure o que não perdeu. Não acabe o que não começou. Não insista com o que não acredita. Não minta se não se convenceu. Não apele se ainda não perdeu. Não mie se nasceu pra latir. Não fuja se não sabe o que quer. Não aja se não quer uma reação. Não peça um tempo se já decidiu. Não durma sem ter sonhos. Não ignore o amor, seja ele qual for.


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29/01/2011 - Brevidade, o pássaro que não nasceu

De repente, terra e céu se encontram numa queda. À margem da estradinha, entre o lago horizonte e sobrados de concreto, um pássaro. Uma ave pequenina, recém-caída do ninho, sob um sol de suores e tonturas. Solitária, abandonada, perdida. Nenhum sinal da mãe, do pai ou do restante da ninhada. Ali, só havia aquele bocadinho de vida pulsando cinza se equilibrando em uma galha rasteira, com o bico aberto de fome, ou de calor ou de pranto.

Antes da chegada de gatos, crianças e carros distraídos, era preciso resgatá-la. Um drible pra lá, uma corrida pra cá, um mergulho acolá. Pronto. Em pouco tempo a ave já está dentro do carro tomando água mineral. Ao chegar a sua nova casa, ao menos na qual passaria os seus primeiros dias, fica instalada provisoriamente em um ninho de periquito. A comida também é improvisada: alpiste, painço, quirela, angu de fubá, minhoca. Tudo dado diretamente em sua garganta, com muita calma e delicadeza. ...
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21/02/2014 - Brigadeiro de panela

Sou brigadeiro de panela manchando seus lábios, grudando em sua boca, querendo ficar até o mundo acabar. Quero ser comido por seus olhos, te dar água na boca e ser lambido na colher. Raspa-me até o último bocado e me leva pra dentro de você de um jeito que só a gente consegue entender. Coma-me sem receio de engordar, pois sou feito de sonho, do teu sonho. Tenho o seu ponto ideal, afinal, você me fez assim ao seu gosto. Sou batido e mexido e levanto fervura por você.

Sou seu brigadeiro de panela e só aceito ir pela suas mãos. Leva-me a sua boca numa levada louca. Prova da minha quentura, da minha textura. Se lambuze de mim com toda sua formosura. Sou brigadeiro de panela, por favor, não me enrola. Tenho urgência de você, vai me soprando e me mordendo. Me coloca na boca. Sou brigadeiro de panela querendo deslizar pela sua pele, ficando mais e mais doce em você. Coma-me, coma-me, coma-me... Ai, me coma de uma vez e para sempre, intensa e urgentemente. ...
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28/04/2011 - Brilhar, brilhar, brilhar

Mande notícias, mande postais, mande sinais... Quero notícias do brilho dos seus olhos que não brilham mais. Será que suas estrelas caíram ou submergiram na névoa espessa que cobre seus olhares. Quero informações do ocorrido, todos os detalhes do que tem vivido e sofrido. Mande notícias de dentro de você, das mais banais às mais complexas. Fale dos caminhos que tem percorrido, dos vinhos que tem bebido, dos carinhos que não tem recebido. Fale das suas frustrações de mocinha, dos seus sonhos de vilã. ...
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15/02/2015 - Bucolismo roxo

As quaresmeiras já desnudam suas flores arroxeando o dia numa litúrgica poesia. As quaresmeiras com suas pétalas macias e folhas ásperas vão dando um tom de nostalgia pelos ares que as circundam. As quaresmeiras transformam o vento alegre, aquele de espírito jocoso, em movimento choroso. As quaresmeiras são fogueiras de dor e delicadeza que se atrevem a desafiar os sorrisos e as faltas de juízo. As quaresmeiras retorcidas pelos jardins parecem velhas, mais velhas que o tempo, ensinando que no lido com a tristeza a gente ainda é aprendiz. As quaresmeiras dão as flores da penitência algo que colore em tons pesados até mesmo a maior inocência. As quaresmeiras são árvores do cortejo diário que resolvem em algumas semanas florescer a dor do mundo que acumulam ao longo do ano. As quaresmeiras choram lilases, violetas, roxas lágrimas em florescência. As quaresmeiras cantam baixinho, gemem e murmuram dias arroxeados e sem perdão. As quaresmeiras são bucólicas chegando a dar cólicas no coração, apaixonado ou não...


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28/07/2008 - Burocratizaram o mundo!

Antigamente, o ato de viver era bem mais simples. Hoje, há burocracia para todos os lados que se olhe. Há algumas décadas, chovia sem qualquer pretexto. Rezava a lenda que bastava São Pedro querer para a água cair do céu. Agora, tem uma história de frente fria, de massa de ar quente, de vento inter-tropical que sopra do continente para o mar. Enfim, burocratizaram a chuva. Outrora, vestia-se de acordo com o espelho e pronto. Hoje é preciso seguir a moda, a tendência, o contemporâneo.

Antigamente, um único médico dava jeito em tudo quanto era doença. Hoje, é preciso ir ao especialista do especialista do especialista. O paciente, tal e qual uma peteca, é jogado para lá, para cá, para acolá sem conseguir resolver o seu problema. O olhar clínico foi substituído por exame disso e daquilo. Em outros tempos, uma palavra ou um aperto de mão selava um acordo ou um contrato. Agora, faz-se necessário vários fiadores, testemunhas, consultas de crédito, antecedentes criminais, comprovações de salário, reconhecimentos em cartório... ...
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08/09/2014 - Buscadeiro

O que é que eu vou fazer com essa comichão? Eu andei pensando em mudar de planeta, de corpo e até de ponto de vista, mas dificilmente a abelha consegue distinguir entre a flor e a florista. O perfume do amor é o que me move. Posso estar cego de olhos abertos ou cerrados, sigo caminhando, flutuando, nadando, arrastando, voando, escalando ao encontro do que me mantém apaixonado. E o auge da paixão é justamente o processo da sua busca, integrando a conquista não conquistada e a saudade sangrada numa mesma tela pública e aberta.


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22/04/2013 - Busco sobreviventes

Busco sobreviventes nos corações em guerra. Busco sobreviventes nas bocas que amaldiçoam. Busco sobreviventes nos conflitos entre iguais e desiguais. Busco sobreviventes nas terras carentes de lei. Busco sobreviventes nos olhos dos céticos. Busco sobrevivente s depois das explosões dos pecados. Busco sobreviventes depois do reinado dos pesadelos. Busco sobrevivente depois da renúncia de deus.

Busco sobreviventes pelas sombras das pragas. Busco sobreviventes pelos partos da peste. Busco sobreviventes pelos urros das feras. Busco sobreviventes nas cidades fantasmas. Busco sobreviventes nos céus sem sol nem estrelas. Busco sobreviventes em cada um que sonhou, que amou, que vibrou. Busco sobreviventes pelas ruínas de um tempo que tombou. Busco sobreviventes depois do assassinato do amor.


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22/01/2014 - Cabeça de Vinícius

Vinícius de Moraes sempre foi meu poeta de cabeceira, por isso recomendo que você tenha sempre à mão um pouco dele para utilizar de forma homeopática ou com a intensidade de uma overdose. Assim como o filho de Xangô, ande por céus e mares vendo poetas e reis, com a certeza de que a vida chega sangrando aberta como uma pétala. Nasça amanhã, andando por onde ainda há espaço. Lembre-se de que “a mulher amada carrega o cetro”. Pergunte-se, sempre que necessário, “quem pagará o enterro e as flores se eu morrer de amores?”. Viva a receita do poetinha “De tudo ao meu amor serei atento”. Viva vinicianamente a vida como a arte do encontro. E atente-se para o fato de que “quem não pede perdão não é nunca perdoado”. Siga Vinícius, mesmo que nas pequenas coisas do dia a dia, para fazer valer o célebre “hei de morrer de amar mais do que pude”. E quando em silêncio aprenda a “viver cada segundo como nunca mais”. Ao ver o luar, tenha cuidado, porque deve andar perto uma mulher. Tenha para si que como cantou o capitão do mato “maior solidão é a do ser que não ama”. E renove-se a cada segundo numa prova ou num pacto de fidelidade trazendo em si a certeza de "que seja eterno enquanto dure"....
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27/10/2014 - Caboclo daqui

Eu sou o caboclo daqui. Essas matas têm a cor dos meus olhos. Esses ventos dizem o que eu quero dizer. Cavalgo nas estrelas. Tudo o que me mandam de ruim o riacho carrega pro mar. Piso em terras astrais. As penas que me enfeitam são de espíritos que cantam e têm asas. Meu sangue é guerreiro. Meu coração derrama seiva. Meu corpo é fechado como o cerne das árvores milenares. Trago uma sementeira nas palavras. E meu grito quebra pedreira, rasga céu, sacode mato. O relâmpago me clareia. Minha alma é de fazer revoada. Minhas terras não se cercam. Minhas flechas me guiam. Minha razão é forte e minha paixão verga a morte.


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