Daniel Campos

Prosas

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30/10/2010 - Cadê o rei do baile?

Hoje amanheci com vontade de comprar uma vitrola e um bom disco de Tião Carreiro. Hoje amanheci querendo voltar a um tempo que não volta. Hoje amanheci querendo ver aquelas canelas dançando ao som de um violeiro. Hoje amanheci querendo acordar dez anos atrás no Sítio Boa Vista. Hoje amanheci com um gosto danado de passado na boca, como se a saudade tivesse me roubado um beijo. Hoje amanheci com desejo de viver aquela alegria simples e inocente outra vez, pelo menos mais uma vez.

Hoje amanheci assoviando modas e mais modas de viola. Hoje amanheci gastando sola, querendo me encontrar com Tião Carreiro. Hoje amanheci querendo rir e, me embalar, me emocionar e chorar diante daquele cavalheiro que curvava damas e vassouras pelo salão. Hoje amanheci perguntando ao vento pelo paradeiro daquele dançarino. Hoje amanheci comprando costela pra churrasco, amassando limões pra caipirinha e quebrando o sol na palhinha do chapéu que me ensinaram a usar tão bem. ...
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01/06/2015 - Cadê o tempo?

Cadê meu amor o tempo que estava aqui? Cansou de esperar e se foi num pé de vento? Tomou chá de sumiço, indo-se embora como que por obra de feitiço? Cadê, cadê o tempo que não deixou rastro? E eu pensei que o tempo tinha comigo algum lastro. Imaginei que iria me esperar, mas o tempo, meu amor, foi ter com outro. O tempo virou mundo. O tempo fechou a porta. O tempo deu pra bater noutro lugar. Cadê meu amor o meu tempo, o seu tempo, o nosso tempo de ficar juntos? O tempo tomou rumo, nem olhou pra trás. E olha que a gente carregou esse tempo nos ombros como quem carrega um andor. Pensamos que o tempo era santo, mas até o tempo botou quebranto no nosso amor. O tempo se enciumou e nem acenou adeus. O tempo se zangou e se enfiou no breu. O tempo nem avisou apenas se levantou de nós e ganhou chão a sós.


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08/04/2012 - Cadê os coelhos?

A menininha acorda apreensiva em busca de patinhas. Na verdade, rastros de coelho. Procura os tais vestígios pelo chão de seu quarto, pelas paredes e até no teto. Tamanha sua ansiedade chegou a sonhar com um coelho orelhudo, branco e de olhos vermelhos. Pensou que ao abrir os olhos enxergaria coelhos pulando para lá e para cá sem parar. Quando não viu nada fez beicinho e ameaçou um chororô sem fim. Chamou pela mãe, pelo pai, pela avó, mas ninguém apareceu. Será que havia sumido junto com os coelhos?...
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Caetaneando mais uma vez


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Café com Cony

Desde muito cedo adquiri o hábito saudável de tomar café da manhã com Carlos Heitor Cony. O jornaleiro, antes mesmo de o galo gargarejar com as primeiras gotas de sol, atirava aquele amontoado de notícias contra a minha janela. Não sei como, mas ele tinha pré-disposição em me acordar. Acredito que ele, o jornaleiro, só tinha ânimo para sair de casa, lá pelas três horas da madrugada, e pedalar a bicicleta, que o deixava com as pernas suspensas, só pelo íntimo prazer de me acordar.

Podia estar sonhando no mais perfeito paraíso, mas o menino travesso insistia em me trazer para a realidade. Tinha medo de que minha alma, que ficava vagando de mundo em mundo, se assustasse com o barulho, nada sinfônico, produzido pelo beijo forçado entre manchetes do dia com as frestas da minha veneziana, e não mais encontrasse o caminho para voltar ao meu corpo. Cheguei a espiar o menino pelo portão, acordando mais cedo que ele, e pude notar o sorriso em seu rosto ao arremessar o jornal contra o meu sono. ...
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09/03/2015 - Caipirice de luto

Há alguns pés de vento que vêm para cumprir o destino. No mesmo sopro, o vento sertanejo levou Zé Rico e Inezita Barroso. Ambos são parte da minha infância e juventude. Os domingos no sítio ao som de Milionário e José Rico. Os domingos em casa ao ritmo de Viola Minha Viola. Antônio e Liberato, meus dois avôs, encantavam-se tanto com a música de Zé Rico quanto com a de Inezita. Pode parecer antiquado para aqueles que colocaram o sertanejo na universidade, mas não há nada mais atual e autêntico do que essa dupla caipira levada pelo vento de março. ...
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14/05/2008 - Caiu uma floresta inteira

Caiu a última pedra que incomodava no sapato dos desmatadores. Marina Silva pediu demissão. Segundo os ambientalistas que atuam nessa área, o pedido de demissão da ministra do Meio Ambiente é a declaração da abertura da temporada de derrubada oficial da Amazônia. Além disso, a saída da ministra é vista como sinal claro do fracasso da política ambiental de Lula.

Marina tentou mostrar durante seis anos que, para o Brasil ser moderno, ele precisava integrar a dimensão ambiental ao seu desenvolvimento. Infelizmente a dimensão econômica falou mais alto. A Amazônia perdeu, o meio-ambiente perdeu, os ambientalistas perderam, a sociedade perdeu e os donos do capital ganharam mais uma batalha....
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27/09/2010 - Cajus do oriente

Como são belos os cajus do oriente, nascidos e amadurecidos numa vermelhidão pungente. Doces adstringentes, vermelhos penitentes, delicados e ardentes. Como são belos os cajus do quintal, tão esperados, tão encantados, tão vestidos de vermelho quanto o velhinho do Natal. Como são belos esses frutos, benedictus frutos, que conseguem transformar a seca em açúcar, poeira em mel. Pássaros e abelhas: abusai dos cajus do oriente, que mancham os céus como estrelas cadentes.

Como são belos os cajus que surgem coloridos por entre os ruivos cabelos de Iansã. Cajus que causam inveja na maçã do paraíso. Cajus que nos fazem perder o juízo a cada manhã. Cajus que colorem o riso de acauã. Cajus das castanhas e das castanholas. Cajus do oriente miscigenados na paixão espanhola. Cajus perfumados como mulher amada em noite de núpcias. Cajus abocanhados como mulher amada em um momento de astúcia. Cajus de sentimentos caudalosos, de argumentos poderosos. ...
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12/08/2008 - Cajus e esparadrapos

Cheiro de esparadrapo, de remédio, de enxofre, de sangue, de dor. Convenhamos, hospital tem um cheiro nada agradável. O aroma, que chega a causar arrepios ao despertar lembranças dolorosas em nossa memória, perfuma toda a redondeza dessas casas medicinais. Digo tudo isso, mas só entro em hospital em último caso. Contudo, costumava passar frequentemente em frente a um dos maiores deles aqui em Brasília. Afinal, era caminho para se chegar ao Santuário Dom Bosco, que guarda a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora. Mas em razão do cheiro de remédio e dor beirar o insuportável, fui obrigado a mudar de rota. ...
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17/09/2010 - Calado

Hoje não tem texto. De repente, roubaram-me de uma só vez todas as palavras, das mais genéricas as mais íntimas. É como se não existisse linha ou verso algum dentro de mim. Estou vazio de frases, de rimas, de concordâncias. Estou ausente de expressões, aliás, estou inexpressivo. E por mais que eu chame, implore, humilhe-me, a inspiração não dá o ar da graça. Não. Realmente não tem graça. Tento juntar pontos, vírgulas, aspas, mas há sempre uma interrogação em meu caminho.

Será que estou oco? Oco de vida. Oco de idéias e ideais. Oco de fantasia, de prosas e poesias. Oco de imaginação. Oco de realidade e ficção. Oco de sentidos. Oco de sons e vozes. Oco de estrelas e sementes. Oco de histórias e lendas. Oco de dramas, tragédias e romances. Oco de dores e saudades. Oco de caminhos. Oco de expectativas e lembranças. Oco de sonhos e pesadelos. Oco de contos e crônicas. Oco de chamas, conversas e corações....
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