Daniel Campos

Prosas

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07/11/2015 - A parte pode ser o todo

Se o rio encher, transborda. Se o olho crescer, vira olho-gordo. Se a banana viçar demais, empedra. Se o ciúme passar dos limites, sufoca. Se a música se alongar, cansa. Se o doce passar do ponto, açucara. Se o medo ganhar asas, vira pânico. Se o choro for além, alaga a alma. Se colocar muito limão, azeda. Se a cruz dobrar, não se pode carregar. Se abusar do ouro, passa-se de chique à brega. Se o sono for mais que o bastante, a vida passa. Se fritar um minuto a mais, queima. Se mais pensar do que escrever, perde o poema. Se a poda for severa, mata. Tudo nesta vida tem a sua conta, a sua medida, a sua receita. O segredo está em sabermos a hora exata de parar isso ou aquilo para que fiquemos com o melhor de cada coisa, de cada pessoa. Nem sempre mais é o melhor. Precisamos saber dosar para que a nossa insaciedade não ponha a perder o perfeito está. Se o sabiá tivesse três asas ou dois bicos não iria voar ou cantar melhor ou mais bonito do que já canta. Encanta-se com o fato de que a parte pode ser o todo, eis a arte.


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06/11/2015 - Pedaladas

De bicicleta ela pelada pelas ruas sem medo, sem grades, sem regras demais. Avança sinais, sobe em calçadas, corta jardins, faz suas próprias estradas. Passa por senhoras, por bandidos, por crianças, por padres fazendo seu ritmo. Não sabe quantos aros tem suas rodas nem tampouco quantas voltas já deu, mas sabe que se chamasse Julieta já teria o seu Romeu também vindo de bicicleta. Não gosta de poesia nem de poeta. É mais do rock e se amarra no croc-croc da mudança de marcha. Acha que tudo é matemática, física, química, vida exata. Porém, no selim da bicicleta faz festa e joga tudo pro ar. São novos teoremas e não importam mais os velhos dilemas. Apaixonar-se? Casar-se? Pra que? Com dois, por mais que seja por vezes divertido, fica mais difícil se equilibrar na bicicleta. E esperta como só não quer seguir a passeio, pedala e mostra a que veio.


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05/11/2015 - Tão nós

Galinha e milho. Queijo e goiabada. Ovo e ninho. Passos e estrada. Cobra e veneno. Grande e pequeno. Céu e nuvem. Caça e caçador. Ferro e ferrugem. Espinho e flor. Cama e lençol. Fá e sol. Amor e perdão. Sim e não. Chuva e sementeira. Algodão e linho. Pau e fogueira. Corda e pinho. Manga e fiapo. Remendo e trapo. Angola e Luanda. Trem e trilho. Coreto e banda. Mãe e filho. Fome e jabuticaba. Mágica e abracadabra. Arroz e feijão. Óleo e fritura. Amor e paixão. Fé e cura. Mina e água. Passado e mágoa. Cachorro e osso. Beijo e arrepio. Cheiro e pescoço. Solidão e vazio. Achados e perdidos. Apertos e gemidos. Pele e coração. Voz e violão. Verde e rosa. Ponteiro e hora. Poesia e prosa. Ontem e agora. Sal e açúcar. Fronte e nuca. Porta e janela. Parede e rede. Tesouro e sentinela. Fome e sede. Delírio e realidade. Certeza e saudade. Retrato e lembrança. Onda e mar. Roda e criança. Pregos e tear. Rato e queijo. Sonho e desejo. Mãos e anéis. Telas e pincéis. Encantos e olhos. Seriedade e meninice. Saias e suspensórios. Ciúmes e tolices. Promessas e enxovais. Futuristas e ancestrais. Bobos e apaixonados. Distantes e perto. Juntos e separados. Chão e teto. Verso e rima. Metades e obra-prima. Disco e som. Noite e lua. Boca e batom. Minha e tua. Que e porquê. Eu e você.


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04/11/2015 - Reflexões noturnas

Escuro. Escuridão. Sombras. Assombração. Relampeja. E me veja. Troveja. E me beija. Dá-lhe arruda. E me gruda. E me acuda. Chova. E me mova. Ilumina. E me sina. E me alucina. Minha menina. Clareia. Claridade. Clarão. Tempestade. Noite. Borrão. Açoite. Bicho-papão. Cama. Drama. Clama. Por Deus. Pela luz. Pelo breu. Para, continua, valeu. Lampião. Lamparina. Vela. Aquarela. Minha bela. Eclipse. Disse-me-disse. Desassossego. Sol negro. Estrela. Centelha. Friagem. Estiagem. Miragem. Time. Je t’aime. Bobagem... ...
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03/11/2015 - Coração morcego

Meu coração anda achando que é morcego ficando de ponta cabeça no meu peito. Os guardados do coração caindo pelo corpo todo como se o mundo tivesse virado de pernas para o ar. E em crise o coração não quer voltar. Passa o dia dormindo de ponta cabeça e a noite a caçar o que alimenta um coração pelas sombras da noite que a todos cobre. Meu coração sem juízo, rebelde, medroso. Coração que treme. Coração que sangra. Coração que não se expõe. Coração machucado. Coração tomado. Coração revirado. Meu coração anda achando que é morcego fazendo do meu peito sua caverna particular e assombrando (assombrado) quando o assunto é amar.


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02/11/2015 - Confusão

Era eu, era tu, era nós. Era todos debaixo dos mesmos lençóis. Era beijo, desejo e queijo com geleia. Era rei, era princesa, era plebeia. Era aplauso sem plateia. Eram nós, ilhós, dós. Eram tantas abelhas se dando na mesma colmeia. Era Shakespeare? Era Nelson Rodrigues? Era Dante Alighieri? Era teatro, era real, era fato, era carnal, era retrato três por quatro, era zodiacal. Era eu, era tu, era todo mundo nu. Era azul, era blue. Era blues. Era Buda, era Afrodite, era Jesus. Era religião. Era canção. Era paixão. Era impressionismo, realismo, romantismo. Era cós. Era vós. Era a voz de dentro. Era sentimento. Era necessidade, saudade, vontade. Era a anti-realidade. Era Saturno de coturno em Plutão chamando por Netuno. Era a berra da Terra. Era parte de Marte. Era arte da guerra. Era o amor que erra a mira e atira a deus dará. Era eu, era tu, era nós num pé de araçá.


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01/11/2015 - Chovendo em mim

Quando chove eu fico verde, as águas do meu ser ganham volume, os pássaros interiores cantam como se tudo e todos fossem amores. Quando chove eu durmo em paz, tenho mais apetite e sou dado a ficar grudado com quem me quer bem. Quando chove eu floresço o que não me esqueço e como flores eu reapareço na felicidade dos casais numa saudade que nunca ficou pra trás. Quando chove eu fico fértil à inspiração que brota em mim como lua no sertão, imensa e desejada, densa e amada. Quando chove eu me liberto e tenho a felicidade por perto. A felicidade das matas, das nascentes, da bicharada em meio a chuva que cai fazendo ninhada no meu coração que se enche feito ribeirão.


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31/10/2015 - Quando durmo, sumo de mim

O sono é tanto que o meu encanto é me fazer dormir em qualquer canto. O corpo cochila. Os olhos pescam. A cabeça dá apagão. E sonho acordado para além da imaginação. Os carneiros nem precisam pular. As moças nem precisam fazer cafuné. As camas nem precisam ser macias. Onde o corpo encostar ele vai se entregar ao sono. E tem gente que tem fé no sonho. Que bicho vai dar? O que isso vai significar? Pra onde o sonho vai nos levar ou nos levou? Não sei, não fui, não vou... A carne tá cansada e alma é alada. O de fora fica o de dentro vai embora. A alma escapole e bole por aí. Meu corpo é o ninho, o espírito é o bem-te-vi, a alma é o que vale o caminho e pra todo lado ninguém está sozinho. Quando durmo eu sumo de mim.


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30/10/2015 - Sendo assim

Eu sou aquele que acredita no amor despido de qualquer interesse, no amor maior, no amor que cura, transforma, edifica. E assim amo intensa e verdadeiramente. Tenho começo, mas não tenho fim. Sou feito de mato, de água de mina, de caminhos de terra batida. Preciso de chuva para brotar, florar, madurar. Falo sozinho. Ando com a cabeça nas estrelas. Escuto sempre o que o vento tem para dizer; E quando ele não vem eu o chamo com assovios que não sei. Protejo as árvores como se defendesse a minha família. Não sou de voltar por onde já deixei rastros, mas meu orgulho não me impede de nada. Sou da lua. Sou cíclico e continuo. Cavalgo em pensamentos que me levam pra longe. Tenho raízes, mas também tenho folhas que vão pelo mundo independentemente se carregadas por uma ventania ou ligeiramente enroscadas nos cabelos da mulher que passa. Sou crônica, conto, verso, poema, prosa, romance. Sou texto, pretexto e contexto. Tenho um coração-lamparina que clareia, alumia, relampeia e até incendia. No passado, já fui pássaro. No futuro, já fui homem. Hoje sou menino e escondo minhas asas. Sou branco, preto, mulato, caboclo. Tenho índios e pretos velhos dentro e fora de mim, que me guiam por aqui e ali e ainda a acolá. Estou entre o céu e a terra. Sou medianeiro. Sou jaguar. Amor incondicional, humildade e tolerância são minhas bandeiras. Caminho deixando marcas. Caminho tentando consertar o ontem. Guardo em mim várias vidas, mas tenho a consciência de que esta pode ser a última. Aproveito, portanto, de tudo, com tudo, no tudo. Por mais que a estrada seja longa, tortuosa, íngreme eu sei que atalhos não me são mais permitidos. Não tenho vergonha de chorar. Não nego o que sou. Não fujo do que eu quero. Lanço-me ao mundo como um punhado de semente. Sou dado ao profundo, mas é no raso que labuto e aprendo. Eu não me vendo por nada. Não sou santo, mas uma tentativa constante de ser aqui e agora o que não dei conta de ser lá atrás. Tenho em mim uma centelha de deus, mas sou humano. Busco a todo instante perdoar e me perdoar. Só não perdoo uma colher bem farta de doce de abóbora ou de um pé pretinho de jabuticaba. Não tenho medo de fantasma, de assombração, somente do que eu podia ter feito e não fiz. Sou melódico, sentimental, passional, pródigo quando o assunto é paixão. Apaixono-me perdidamente a ponto de eu me perder por completo. Perder o chão. Perder o juízo. Perder a cabeça. Perder o rumo. Perder o eixo. Porém, é no amor que me encontro e me reencontro e torno a me encontrar quantas vezes por preciso. Sou mais de escrever do que de falar. Sou daqueles que vivem o que só existe no faz-de-conta. Sou encantado por natureza. Emociono-me com porteiras, trilhos, mares, constelações, enfim, caminhos que me levam. Eu tenho meu livre-arbítrio, mas não ando só. Sei que sempre está por perto quem me quer bem e também quem me quer mal. Sou o fiel da balança. Tudo depende dos meus atos, da minha conduta, da minha vibração. Não enjeito trabalho. Se puder eu faço. Eu me coloco à mercê da espiritualidade maior. Estou a serviço do amor. Tenho ainda muito a aprender, a fazer, a desenvolver. Sou só um grão de poeira no visível do universo invisível. Em minha mudança diária quero levar cada vez menos malas, sacolas, caixas... Só me importa a bagagem interior. O corpo é só uma casca. Meus erros reconhecidos adubam meu território para que a próxima safra seja (ainda) mais proveitosa. Não há oportunidade a ser perdida. Tudo é pelos outros e pelos outros sou por mim. Cuido da minha fé em deus, em meus mentores, em mim, em meus conhecidos e desconhecidos... Fé no hoje, no amor, no auxílio, na transformação, na cura, no perdão, no que está por vir. Não mais brigo com o tempo, pelo contrário, deixo o tempo me temporizar ao seu modo. Estou com corpo, alma e espírito tentando pagar minhas dívidas, aprender a amar de verdade e ser o que eu não fui em outras experiências. Sou um caminhador. Sou um trabalhador. Sou um sonhador tentando fazer um ou outro sonho vingar. Sou imortal. Tenho começo, mas não tenho fim. E sabendo que tudo passa, tenho que praticar o desapego, por mais que isso me doa. É preciso desapegar, inclusive de mim, pois o que terminou de escrever o texto já deve ser um tanto melhor em relação ao que começou.


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29/10/2015 - Sementes ao vento

Eu não tenho medo da morte. Não acredito em azar, mas me considero um sujeito de sorte. Eu não nego o que fiz tentando ser feliz. Não sou santo e nem quero ser, ao meu ver basta manter o encanto. E no encanto me agiganto tocando a lua, libertando a alma que flutua cá dentro em mim. Não exijo demais, apenas o direito de não acreditar no fim. No fim do mundo. No fim das coisas. No fim da vida. Eu não sou profundo, mas vou a fundo. Eu sou giz riscando a lousa. Eu sou a lida do sentimento. E sentimentos são pra sempre. Portanto, faça do seu amor sementes ao vento.


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