Daniel Campos

Prosas

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20/03/2016 - Eu voei

Arrumei a cama com uma colcha de retalhos dos sonhos que já tive e que hoje me esquentam nas noites mais frias. Enchi o bule de café para engolir as palavras que descem a seco pela minha garganta. Palavras que não quero engolir. Palavras que se remoem pela minha boca querendo fugir. Palavras que perderam a hora de serem ditas. Palavras benditas que se tornaram malditas, e que, mesmo bonitas, ninguém as repita. Coloquei o gosto da vida que ainda me resta no meio de um pão. E mastiguei o que ainda me sobra como um cantor mastiga a sua canção. A mesma canção que ele canta toda vez que sobe no palco como se fosse a sua oração. Abri minha janela, dei bom dia ao infinito do sol reluzindo pelas telhas de zinco, tendo a certeza que dois mais dois são cinco. Olhei as horas e mais uma vez veio a tristeza de ainda, de ainda não ser a minha hora. Liguei a TV, abri um livro, pensei em mim, em você, em nós, o que eu ainda vivo. Fui para frente do espelho e vi meu sorriso vermelho, em carne viva, numa sina de ser imenso sendo pequeno, de se ouvir de dentro para fora, de vir mesmo tendo de ir embora, de ser tantas vidas num só. Tirei o pó da estante, coloquei um disco para rodar, fechei os olhos e dancei com elefantes, como se eu fosse um menino gigante. Depois da dança, senti como se tivesse estrelas na língua, o sabor da esperança, peguei a colcha de retalhos dos sonhos que já tive e coloquei em minhas costas como se fosse asas, e pulei na imensidão desse oceano que veio quebrar suas ondas na minha janela. E eu juntei meus sonhos, amei-os como nunca, colei-os numa junta, e, por mais incrível que seja, veja, eu voei.


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19/03/2016 - Nosso castelo

É como se o nosso castelo, tão, mas tão belo, fosse de areia e o vento da separação insistisse em nos desabrigar de grão em grão, como galinha que nunca enche o papo, como ratoeira sempre à espreita da fraqueza do rato, como beleza do mato que dá de morrer no asfalto.

É como se o nosso castelo fosse de gelo e os raios de sol quisessem de propósito, pra mor do óbito do nosso amor, derreter o nosso mundo, colocar a perder nosso enlace vagabundo que vive um pro outro, apertado e solto, espalhado em ramas, colado num coito de almas e dramas. ...
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18/03/2016 - Violão arredio

O violão está num canto esquecido, perdido em canções silenciosas. Só escapa uma ou outra nota quando o vento vibra as cordas que mais parecem cobras espichadas ao sol, sem intenção de bote. Inofensiva e decorativa, assim vai aquela peça de madeira entalhada para cantar. O meu violão caipira, do interior do interior, se avexa com a cidade grande e tem saudade do mato. Queria ter sido violão pantaneiro, mas acabou num canto do quarto de um desafinado. Pobre violão que não é tocado, que não é abraçado, que não é incorporado ao corpo do seu mestre. Talvez fosse melhor entregá-lo à correnteza para ele escolher o seu dono rio abaixo. Suas seis cordas não conversam entre si. Suas casas vão ficando cada vez mais longe uma das outras. Suas curvas vão pegando poeira e o silêncio lhe dá uma canseira. Parece que chora um choro quieto, de inutilidade, de frustração, de descriação. Por essas e outras, maltratado naquilo que nasceu para ser, mais dia menos dia ele irá num pé de vento ou nas mãos de uma mulher que ao contrário do meu coração prefira fugir com meu violão.


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17/03/2016 - Obelix, Charlie Brown, Pato Donald, pai

Meu pai me ensinou soltar a agulha da vitrola sem arranhar as vozes de Caetano, Bethânia e Chico Buarque. Trouxe-me lágrimas verdadeiras, num choro sentido, quando anunciou a morte de Tom Jobim. E pelas páginas de livros e jornais, trouxe-me a poesia de Vinícius de Moraes, a baleia de Graciliano Ramos, as lutas de Garcia Marques, os meandros de Saramago, o humor de José Simão, as viagens de Arnaldo Jabor, os passados de Carlos Heitor Cony. Meu pai de tantos jornais debaixo do braço, das bancas de revista, dos livros enfileirados, sem ordem alguma, em suas tantas estantes. Se eu pudesse dar um presente ao meu pai, dar-lhe-ia tempo e paz para ler todos os livros que ele comprou um dia. Muitos pais ensinam os filhos a nadar, mas o mais próximo de água que meu pai chegava comigo era da bica de água da Rainha, onde ele levava sempre dois galões grandes, um azul comprido e um branco mais arredondado, para buscar a água que bebíamos durante a semana. Ainda me lembro do gosto daquela água que escorria das torneiras farta, como se todos os rios do mundo desaguassem ali. E por falar em desaguar, o que dizer dos olhos de meu pai depois de perder Bizuco e Kika. Ele foi o último a se despedir dos dois cachorros que mais marcaram nossas vidas. Além de jornais, meu pai sempre chegava em casa com compras, petiscos, filmes, discos, notícias, preocupações, medos e uma forma calada de demonstrar seu amor pelos que habitavam a casa que ele construiu pedaço por pedaço. E a cara fechada, que chegava a franzir a testa, escondia um coração menino, afoito, esbaforido que por muitas vezes embaçava seus óculos esverdeados. Meu pai me apresentou à Mangueira de Cartola, o tempo de Paulinho da Viola, a força de Clara Nunes, Elis Regina, Dolores Duran. Meu pai ainda me emprestou seus pais, um avô de tantos causos e uma avó de inúmeras receitas. Sonhou um país melhor para mim e meu irmão. Guardou as notas de real com a esperança de que nós vivêssemos enfim em um mundo sem inflação. Meu pai foi muitas vezes além dos seus limites, lutando contra si mesmo, para tentar agradar. Com o passar das forças perdeu boa parte de suas forças, perdeu muitas lutas para si mesmo, mas continua tentando agradar. Meu pai com o tamanho de Obelix, com a alma de Charlie Brown e com o nervosismo do Pato Donald foi, do seu jeito, se construindo, descontruindo e reconstruindo pai. Por essas e outras, minha mãe me deu ao mundo e meu pai me deu o melhor do seu mundo.


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16/03/2016 - Bailarina de olhar anil

A bailarina saiu da ponta, arrancou as sapatilhas e correu pela rua encharcada da chuva das seis. Não se ateve aos sinais, às faixas, às regras e nem aos casais namorando ignorando o tráfego. Dessa vez ela nem tirou a maquiagem do ensaio, colocou suas personagens num mesmo balaio, e correu hospicianamente pelo asfalto que sangrou seus pés tão finos como hinos nas bocas de fiéis. E na correria do fim do expediente o mundo não se tornou ciente do desespero da bailarina que cruzou a esquina como se descobrisse de um só impacto que deixou de ser menina para ser mulher nos braços de um qualquer. Ao contrário de rosas e tangerina, deixava pelo ar um cheiro de cangibrina e seus passos embriagados iam dois pro futuro, dois pro passado. E aquele restolho de chuva caiu tudo de uma vez de seu olho esquerdo num temporal que finda a chuva trazendo a aragem, a estiagem, a viúva que só tira o preto para levar o desejo a eito. A bailarina como colombina recém-acordada na quarta-feira de cinzas avançou doida pela cidade em busca de uma saudade, de um salvamento, de um tempo que já não havia. E ela nada dizia, só chorava e resmungava do coração uma velha e rasgada homilia. Coitada da bailarina que no seu íntimo atravessou o ritmo e desafinou passos, desfigurou traços, desatou laços sem se importar se perderia ou não o compasso. Foi deixando meias-calças, meias verdades, meios amores para se entregar plena ao espetáculo dos tentáculos da noite que engoliu seu par de olhos anil.


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15/03/2016 - Foram me chamar

Foram me chamar pra roda de samba, mas o couro do meu tamborim rasgou. Foram me chamar pra seresta, mas das sete cordas do meu violão uma arrebentou. Foram me chamar pra lavagem da escadaria da Senhora das Guias, mas, fia, com todo respeito, não estou num bom dia. Foram me chamar para pescar, mas meu coração já estava fisgado num anzol bem amarrado. Foram me chamar para o festejo, mas cadê meu realejo? Foram me chamar para assistir os fogos de artifício, mas prefiro as luzes que vejo explodindo no fundo dos meus olhos de hospício. Foram me chamar para raspar o tacho, mas minha colher a correnteza levou rio abaixo. Foram me chamar para dar colo e daí santo nenhum me segura, rezo à loucura e logo me embolo.


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14/03/2016 - Acendendo as velas

Acenda as velas. Bota os veleiros no mar. O vento bate a cortina das janelas. Os olhos da moça pelos confins estão a velejar. Reza pros seus que eles hão de te ajudar. Nada de já acordar com três pedras de sal em cada olhar. O choro não te deixa enxergar o que te espera. Se tudo está seco, sem flor, sem vida, sem amor, não se desespere, já vem a primavera. Acendas as velas.


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13/03/2016 - Hoje é dia de domingo

Hoje é dia de pão fresco com manteiga de leite, daquelas bem amarelinhas e cremosas. Hoje é dia de galo cantar acompanhado do sino da igrejinha. Hoje é dia de gordura pingando na brasa. Hoje é dia de moda de viola, de bossa nova, de tamborim e pandeiro. Hoje é dia de comer pipoca no escurinho do cinema. Hoje é dia de jogar bola e de dar bola a alguém. Hoje é dia de praia, piscina, cachoeira, enfim, de se dar com a água. Hoje é dia de ir além do aquém. Hoje é dia de pedalar a bicicleta ou as pernas do seu amor. Hoje é dia daquela comidinha especial, com cheiro e tempero de fazer inveja a qualquer outro dia da semana. Hoje é dia de colo, de abraço, de corpo junto e misturado. Hoje é dia de deixar o relógio de lado e caminhar por um outro lado. Hoje é dia de se encontrar com árvores, com trilhas, com lagos, com feiras, com sabores, com perfumes, com crenças e outras bênçãos. Hoje é dia de vestir a roupa de domingo e sair por aí como que não querendo nada, mas sonhando com tudo, sem espada, nem escudo.


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12/03/2016 - Na biblioteca

Interior de biblioteca. Pessoas leem em mesas apilhadas de livros e outras caminham com exemplares nas mãos. Uns vasculham estantes e outros, páginas. A bibliotecária traz olhares de um final nada feliz. Em uma das mesas, Lia está lendo ao lado de Luiz, que por sua vez tem a sua frente vários livros abertos. Ele rabisca em um bloco olhando para ela com olhos intensos, tão intensos que a incomodam. Lia muda de mesa. Luiz, sem qualquer cerimônia, segue a moça ficando ao lado dela. E, no novo posto, continua lançando olhares indiscretos para o rosto e para a parte do corpo da moça que escapa aos seus olhos. Lia murmura pedindo para ele parar. Luiz sussurra que é impossível, pois ela não o deixa parar. ...
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11/03/2016 - A lenda de Juara

Juara é uma índia que aos 14 anos se apaixona por Ubirajá, um índio prisioneiro de uma tribo rival. Um amor proibido, pois ela, como filha do cacique, está prometida ao guerreiro Apoema. Ela se entrega a Ubirajá e fogem juntos. Na fuga, encontram o pajé no meio da mata, que profetiza o pior. Passam-se 13 anos. Juara vive com Ubirajá na cidade grande, num barraco. Ela trabalha como doméstica e ele, numa farinheira. Ubirajá é assassinado. Depois do funeral, Juara encontra uma jandaia dentro de seu barraco. Ela não entende como a ave foi parar ali, mas a adota. A ave tem comportamento estranho. Quer ficar grudada com Juara e agride seus amigos e qualquer homem que se aproxima dela. Ela começa a sonhar com o pajé dizendo que ela precisa voltar e com Ubirajá virando e desvirando a jandaia. Ela larga tudo e volta para a tribo. A jandaia vai junto. Na tribo é recebida com hostilidade e precisa lutar para reconquistar seu espaço. Descobre que Ubirajá havia voltado como jandaia para terminar a história deles, já que ele foi morto antes da hora. Apoema já está casado, mas ainda a quer como sua esposa, tanto que vence os duelos com outros índios por sua mão. Seu pai, o cacique, está muito doente e quer casar a filha antes de morrer. No dia do casamento com Apoema, por amor a Ubirajá, Juara se enche de penas e também se transforma numa jandaia voando pela floresta adentro.


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