16/03/2016 - Bailarina de olhar anil
A bailarina saiu da ponta, arrancou as sapatilhas e correu pela rua encharcada da chuva das seis. Não se ateve aos sinais, às faixas, às regras e nem aos casais namorando ignorando o tráfego. Dessa vez ela nem tirou a maquiagem do ensaio, colocou suas personagens num mesmo balaio, e correu hospicianamente pelo asfalto que sangrou seus pés tão finos como hinos nas bocas de fiéis. E na correria do fim do expediente o mundo não se tornou ciente do desespero da bailarina que cruzou a esquina como se descobrisse de um só impacto que deixou de ser menina para ser mulher nos braços de um qualquer. Ao contrário de rosas e tangerina, deixava pelo ar um cheiro de cangibrina e seus passos embriagados iam dois pro futuro, dois pro passado. E aquele restolho de chuva caiu tudo de uma vez de seu olho esquerdo num temporal que finda a chuva trazendo a aragem, a estiagem, a viúva que só tira o preto para levar o desejo a eito. A bailarina como colombina recém-acordada na quarta-feira de cinzas avançou doida pela cidade em busca de uma saudade, de um salvamento, de um tempo que já não havia. E ela nada dizia, só chorava e resmungava do coração uma velha e rasgada homilia. Coitada da bailarina que no seu íntimo atravessou o ritmo e desafinou passos, desfigurou traços, desatou laços sem se importar se perderia ou não o compasso. Foi deixando meias-calças, meias verdades, meios amores para se entregar plena ao espetáculo dos tentáculos da noite que engoliu seu par de olhos anil.
Comentários
Impressionante como você nos conduz no texto. Parece uma dança.
:)
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