Daniel Campos

Prosas

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26/11/2012 - A chuva vem...

Lá vem a chuva, lá vem a chuva, lá vem a chuva, a chuva vem e...

O bêbado enche o copo e toma uma dose de chuva. A moça pensa que o céu é um imenso chuveiro e sai cantando pela rua. O lavrador, de tanta felicidade, dança no ritmo da chuva. Enquanto tem gente correndo, há gente se entregando à chuva. O cachorro se chacoalha tirando de si todo o peso do mundo. Os apaixonados caminham entrelaçados sob o mesmo guarda-chuva. Há quem levante um brinde ao fim da estiagem. A cama ganha colchas e cobertas. Os peixes sobem à flor d’água. O coração de açúcar derrete. A viúva se lembra do marido chegando com a chuva e fica a esperá-lo no portão. Para não estragar os sapatos, a mulher prefere seguir descalça. ...
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25/11/2012 - Com a cara de Interlagos

Teve borracha queimada. Teve rodada. Teve ultrapassagem. Teve champanhe. Teve ronco de motor. Teve abraço. Teve bronca. Teve chuva. Teve choro. Teve vibração. Teve garra. Teve troféu. Teve bandeirada. Teve conquista. Teve suor. Teve adrenalina. Teve incerteza. Teve competição. Teve despedida. Teve herói. Teve vilão. Teve grito. Teve reza. Teve “S” do Senna.

Teve luta. Teve duelo. Teve guerra de nervos. Teve sonho. Teve desejo. Teve sorte. Teve azar. Teve simpatia. Teve marca no asfalto. Teve zebra traiçoeira. Teve arquibancada. Teve festa. Teve frustração. Teve capacete tomando o lugar do rosto. Teve gosto, muito gosto. Teve volta da vitória. Teve honra. Teve aplausos. Teve vontade de bis. Teve coração na boca. ...
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24/11/2012 - Os truques de Seu Antônio

Seu Antônio, em sua última passagem pela Terra, era um homem cheio de truques e mistérios. Pouco se sabia sobre sua vida. Ele praticamente não falava de sua infância, de sua adolescência, de suas aventuras. Suas histórias sempre falavam sobre outros personagens. O segredo, para conhecê-lo, era ir juntando em seus causos e piadas pedacinhos dele. Como todo autor de boas histórias, coloca pitadas de si e do que o rodeio em suas narrativas.

Ele era o menino da história que nunca brincou. Ele era a criança tratada como bicho pelo pai. Ele era aquele de corpo franzino que carregava e descarregava mil caminhões de lenha por dia. Ele era o aluno que não pode estudar. Ele era um apaixonado pela dança. Ele era o jovem que teve que abrir mão dos bailes. Ele era o recém-casado que saia de casa com uma enxada nos ombros a procura do pão de cada dia. ...
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23/11/2012 - O axé de Joaquim Barbosa

Ir à cerimônia de posse de Joaquim Barbosa foi como ter ido ao redescobrimento do Brasil. Um país sem máscara, sem vergonha de ser o que é, assumido e feliz. O Salão Branco do Supremo Tribunal Federal nunca foi tão negro. Como foi bom ver a mais alta corte do país com a cara do Brasil. A negritude de Lázaro Ramos, de Milton Gonçalves, de Djavan, de Martinho da Vila, de Hamilton de Holanda traduzia o sentimento de festa. Entre homens de terno e mulheres de tailleur, uma senhora negra com as roupas de santo totalmente inserida na carga simbólica daquele momento. Impossível ficar indiferente ao clima instaurado por aquela arquitetura de Oscar Niemeyer. Depois do axé trazido por Joaquim Barbosa, a certeza de que o Supremo nunca mais será o mesmo....
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22/11/2012 - A saudade corta

Por mais que meu corpo fique quarando sob sol e chuva, a saudade continua impregnada. Eu me lembro, com nitidez, da senhora estendendo as roupas vindas da roça no cimentado do quintal formando um jardim de tecidos e cortes. Uma arte tão abstrata em sentidos quão concreta em perseverança.

Manchas de terra, de óleo, de comida sendo tiradas por meio de uma receita tão antiga quão nossa identidade. De quando em quando, as mãos, também manchadas, jogavam punhados de água com sabão sobre aquelas peças. Um, dois, três dias quarando, as roupas soltavam toda a sujeira, por mais pesada que fosse....
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21/11/2012 - E aí, vai encarar?

Leva seu olho gordo para lá senão vai se cegar na força do meu patuá. Não preciso da sua opinião, da minha vida cuido eu e cuido bem cuidado. Da minha história você não é nem futuro nem presente nem passado. Vá canalizar seus maus fluidos na frente de um espelho, pois seu mal não passa do meu tornozelo. Chega de roubar a minha energia, de querer possuir a minha poesia. Em mim sua feitiçaria não dá pé, corto seu mau-olhado no meu candomblé.

Meu babalorixá já falou que quem desejar meu mal pode se preparar para chorar. Pode chorar, ai chora, pois sua energia ruim eu mando embora com meus trabalhos de limpeza. E para sua supresa, o jogo de búzios já me indicou as oferendas, os ebós, os boris, os obis, os âbôs, as pembas que eu preciso providenciar para me libertar desse seu campo negativo. E é bom ficar vivo, pois toda maldição que me mandou, vou devolver com juros e correção. ...
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20/11/2012 - Ori, o meu eu verdadeiro

Hoje é dia de Ori, o Orixá pessoal de cada um. Ori reside dentro de nós, do princípio ao fim. Ori em yorubá quer dizer cabeça, mais precisamente “cabeça interior”. Sendo assim, pode ser traduzido como nossa consciência, nosso eu verdadeiro, nossa personalidade divina. Afinal, Ori é o orixá que individualiza a nossa existência. Isso mesmo, Ori é o responsável por nos fazer únicos no meio de bilhões de pessoas. O seu Ori merece celebrações e cuidados especiais, pois é o principal abrigo do axé do seu orixá. ...
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19/11/2012 - Morte ao tédio

Inverta os dias da semana. Vire o relógio de ponta cabeça. Troque o carro por uma asa delta. Como o jantar no café da manhã e o petisco do final de semana no almoço. Leia de trás pra frente. Fale o que nunca falou, faça o que nunca fez, sinta o que nunca sentiu. Seja capitão dos barcos de papel Lançados à enxurrada. Siga no sentido contrário do engarrafamento. Troque a cor, o sabor e a essência do sabonete, da pasta de dente, do perfume. Vista o que não é dado a vestir. E toda vez que pensar em chorar comece a sorrir. ...
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18/11/2012 - O "quê" de cada um

De que valeria viver sem deixar pistas, vestígios, sinais? Não se esqueça de deixar rastros. Um perfume, uma lembrança, um sentimento. Deixe sempre algo de seu em alguém. Há infinitas formas de deixar saudade, escolha a sua. Por mais anônimo que seja, alguma coisa em você o faz conhecido, o difere, o faz ser identificado. Por mais invisível que seja, a sua marca pessoal existe. Há algo para além do sangue, para além dos genes, para além dos pensamentos que imprime um “quê” especial em cada um. É isso o que fica. É isso o que o tempo não destrói. É isso o que a morte não carrega consigo. Resta a você, portanto, fazer valer esse “quê”. ...
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17/11/2012 - Galo caipira

Quando o galo caipira canta aos pés da surupira até o curupira se espanta, pois tudo amanhece na mata, dos bichos às águas da cascata. Quando esse galo da cor de urucum canta, não fica nenhum olho fechado; seja os olhos do casal de namorados, seja os olhos do gato pardo, seja os olhos do furacão... tudo se abre à canção do galo despertador. Quando esse galo canto na encruzilhada da estrada o vento traz o toque do agogô, a batida de tambor.

Quando o galo caipira canta tudo quanto é silêncio nem respira, só mira a porta de saída. É o sinal para as idas e vindas, para as chegadas e partidas, para os encontros e despedidas. Quando o galo caipira canta o dia chega a ficar tonto, cambaleando entre os contos da melodia. Quando o galo caipira canta tudo se agiganta, tudo se arrepia. Quando o galo se pronuncia é chegada à primavera da fantasia.


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