Daniel Campos

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Encontrados 372 textos. Exibindo página 37 de 38.

A maestrina das tardes

Enquanto as tardes londrinas são marcadas pelo tradicional chá das cinco, as brasileiras são saboreadas com doses diárias de Leda Nagle. E o melhor de tudo é que do lado de cá do Atlântico Sul não há aquele formalismo, aquela frieza, aquela monotonia britânica. O nome desse encontro vespertino já diz que não existe limite para voar ou mergulhar. Sem censura, os dedos de prosa rolam à vontade. Sob a regência de Leda - a maestrina das tardes - surgem típicas rodas de conversa. Em um momento, estamos em frente à televisão, em outro, em rodas de conversa na sala de visita, ao redor do fogão à lenha, na calçada em frente ao portão, no meio da Praça da Matriz, na esquina... Aquele bate-papo tem um quê de ebulição de metrópole e outro de trenzinho caipira que vai passando, vagão a vagão, pelas janelas das nossas retinas. ...
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A mulher que passa cantando coisas de amor

Quem não se lembra dos versos da música A Banda? Versos que falam de coisas simples. Feche os olhos e se deixe só por alguns instantes (como há tempos não se deixa). As bandinhas a desfilar pelas ruas da cidade, sem maiores pretensões ou contentamentos. A cidade se enfeitava para vê-la passar. E tinha lá a sua beleza. E existia algo em comum - a banda. Fruto de uma espécie de magia, ela, a banda, seduzia os transeuntes com marchas que falavam coisas de amor.

Mas as bandas calaram as cidades de ruas pacatas e coretos na praça da matriz. As ruas tranqüilas se transformaram em ruas de hemorragia e as praças se divorciaram dos coretos. A cidade tomou um drinque qualquer e nunca mais se deu às alucinações. Ninguém pára mais para ouvir, ver e dar passagem para os artistas comuns. Ninguém mais fica à toa. O ritmo é sempre o mesmo. As coisas simples, as canções que falavam de amor, uma porção de cada um e outras singularidades ficaram esquecidas em alguma lembrança. Cada lembrança no seu canto, no seu passo. ...
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A nossa missão

Hoje é domingo. Mas hoje é um domingo especial nesses mais de quinhentos anos de Pátria Brasil. Eu sei leitor, cada ser humano tem o seu domingo guardado na memória. Cada um tem as suas jovens tardes, manhãs ou noites de domingo. Cada um de nós guarda um prazer, um amor, um olhar de algum domingo. Entretanto, caro leitor, hoje é diferente. Hoje é um domingo onde o sonho pertence a todos.

Hoje, o dia, por si só, tem uma saudade. Quem não se lembra de Ayrton Senna? Quem não se lembra das corridas de domingo? Quem nunca torceu, sofreu, viveu Ayrton Senna aos domingos? Diante da tela da televisão, acima de qualquer coisa, éramos brasileiros. Quando Ayrton ia às pistas no domingo, o sonho era possível. É nesse plano coletivo que o domingo, hoje, pode se tornar um marco. Mais uma vez, somos brasileiros....
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A nudez de um encanto

Noite. Noite qualquer. Embora noites tenham sempre algo que foge do qualquer. Calada, sem mais anunciações, surge a lua. Surge sozinha em si e sem ninguém por perto. Surge nua, simplesmente lua. Lua nua lua, rimas perfeitas. Se surgisse cheia de enfeites talvez não tivesse graça e, sobretudo, mistério. A nudez da lua é a nudez a ser perseguida pelas criaturas femininas. Lua que surge com o corpo despojado (inteiramente nua) e passa coberta de lembranças, profecias, mistérios. Enfim, coberta com sua própria nudez. ...
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A tarde em um porta-retrato

Devagar, a tarde desliza nos confins do horizonte e sem atrasos, surge você. Surge sem escândalos, sem avisos, sem maiores explicações. Você (apenas) surge e a tarde se encarrega de acontecer. Você (apenas) surge e a tarde deixa de lado o que estava por fazer. Você (apenas) surge e a tarde passa a depender dos seus cabelos.

Se surgir com os cabelos soltos, as canções irão adormecer, lentamente, nos fios da ilusão. Canções inéditas. Canções de improviso. Canções que duram o tempo do seu passar. Os fios soltos no ar como pinturas abstratas. Os fios soltos no ar como caminhos ainda não descobertos. Os fios soltos no ar como riscos de giz. Pinturas sem nome. Caminhos sem volta. Riscos sem destino. Os fios dos seus cabelos e os fios de um destino ainda não traçado. ...
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Abacateiro

Lá no sítio, no terreiro da primeira casa de um recém-casal, um abacateiro é testemunha do casamento que completa hoje cinqüenta anos. Há 50 anos, um casal chegava de mãos dadas naquela terra vermelha, onde casariam seus destinos, suas lutas, suas vidas. Nesses 50 anos, quantos galos cantaram pra eles a chegada de um novo dia. Quantas valsas seus corpos rodopiaram ao longo desses 50 anos. Quantas roupas foram colocadas pra quarar. Quantos almoços foram feitos em plena madrugada. Quanto de suor foi derramado por esses rostos. Ao longo desses 50 anos, quantas vezes esses lábios choraram e esses olhos sorriram. Quantos sonhos queimaram à luz de um lampião. Quantas vezes a égua Faísca os levou pela estrada afora. Quantas plantas, quantos animais, quantas pessoas fizeram parte de suas vidas ao longo desses 50 anos. Quantos foram os encontros e quantas foram as despedidas. Quantas dificuldades, quantas saudades, quantas vontades se misturaram ao longo desses 50 anos. Quantas vidas germinaram dessas mãos no decorrer desses 10, 20, 30, 40, 50 anos. A cada novo ano completado, uma nova semeadura, uma nova floração, uma nova colheita. Quantos dias nasceram, lado a lado, por entre o ubre das vacas. Quantos dias anoiteceram, lado a lado, na brasa do fogão. Quanta fé, quanta devoção, quanta reza ao longo desses 50 anos. Assim como o tronco daquele abacateiro, as mãos que agora recebem as alianças de bodas de ouro guardam marcas que o tempo não conseguiu esquecer. Mãos de Liberato e Adélia. Mãos de seu Líbio e dona Délia. Mãos de trabalhadores que cuidam da roça e cuidam da casa. Mãos de vencedores que cuidam dos filhos, dos netos e agora, de um bisneto. Mãos de sonhadores que cuidam um do outro, num amor à moda deles. 50 anos depois, mesmo com os galhos mais retorcidos e com as folhas mais desbotadas, aquele abacateiro oferece seu tronco para que a vida escreva ali mais uma página da história de ouro de um casal feito de terra, de esperança e de amor.


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Agora eu era o herói

O sol, mais amarelo do que de costume, caía sobre as costas envoltas numa bandeira do Brasil. O prenúncio de um pôr-do-sol se dava num pedaço de pano rasgado, desbotado, suado. A bandeira cobria as costas calejadas de um corpo sem identidade, certidão de nascimento, título de eleitor, contracheque. Era apenas um corpo que tropeçava em sua vida tão torta quão as pernas de Garrincha.

Podia ser Ronaldo, Roberto, Lúcio, Émerson, Adriano. Mas era apenas um sem nome acompanhado de dois cachorros magricelas, Ponta-esquerda e Centro-avante, em dia de Brasil e França. Que importava os acordos comerciais, diplomáticos, poéticos entre os dois países? Naquele dia, o que aquele brasileiro mais queria era acabar com a França através das pedaladas de um menino, do passe mágico de um gaúcho e do chute de um fenômeno. Podia ser 1x0 magro. Bastava uma vitória para vomitar a final de 1998. Nem sua condição de mendigo o envergonhava mais do que aquela derrota....
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Ainda que de repente

Do efêmero bom dia aconteceu o interminável adeus. Conheci-a e a perdi não mais do que de repente. Encontrei-a de verdade tempos depois e então a perdi para todo o sempre. Sempre pode morrer ou renascer. Sempre é mais do que um poente. Sempre é o retrato do ausente que fica a lhe observar.

Deixou-me sem me deixar. Não telefonou, nem escreveu, nem ao menos apareceu num instante sem querer. Tento fazer-me esquecer, fingindo ser tudo tão normal. Mas ela tendia ao infinito, e sendo assim, não acaba como as outras acabaram. Tem todo um caminho a ser percorrido e de nada vale pular etapas....
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Ano novo, velhos sonhos

As borbulhas mergulhadas no interior das garrafas de champanhe guardam segredos inconfessáveis, ao menos, num primeiro momento. Não são simples bolhas de ar com uma densidade diferente. São guardiãs de sonhos que só podem ser realizados no instante em que a rolha é expulsa e as borbulhas se tornam livres da prisão da espera. Não é para menor encanto. Um jantar com a pessoa amada, o nascimento de um filho, a concretização de um grande negócio, enfim, em datas raras e ocasiões especiais, quando os sonhos se tornam de carne e osso, o líquido espumante se faz presente. Entretanto, numa dada época, a magia do champanhe se torna ?comum? e as borbulhas se multiplicam entre tantas promessas....
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Ao cair da tarde

Ao cair da tarde, tento conversar com as rosas de Cartola. Mas elas me dizem silêncio. Ao cair da tarde, coloco um verso de Vinícius num copo ao lado de duas pedras de gelo. Ao cair da tarde, o mundo se transforma em uma grande Ipanema. Ao cair da tarde, arde o tom de um piano imaginário. Ao cair da tarde, o sol ainda suspira. Ao cair da tarde, vem uma tristeza, uma saudade, como se o mundo pedisse maysa. Ao cair da tarde, as folhas de uma mangueira caem secas. Ao cair da tarde, a lua se tranca no camarim e finge ser estrela. Ao cair da tarde, os poetas ainda estão grávidos de sonhos. E vêm as dores das primeiras contrações. ...
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