Daniel Campos

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Ano novo, velhos sonhos

As borbulhas mergulhadas no interior das garrafas de champanhe guardam segredos inconfessáveis, ao menos, num primeiro momento. Não são simples bolhas de ar com uma densidade diferente. São guardiãs de sonhos que só podem ser realizados no instante em que a rolha é expulsa e as borbulhas se tornam livres da prisão da espera. Não é para menor encanto. Um jantar com a pessoa amada, o nascimento de um filho, a concretização de um grande negócio, enfim, em datas raras e ocasiões especiais, quando os sonhos se tornam de carne e osso, o líquido espumante se faz presente. Entretanto, numa dada época, a magia do champanhe se torna ?comum? e as borbulhas se multiplicam entre tantas promessas.

De nada vale pular sete ondas, comer sabe-se lá quantas uvas, vestir-se das representações de uma determinada cor... Se não há champanhe, parece que o ?feitiço? não está completo. E não é pelo sabor da bebida, mas pelo ritual que a cerca. Passar a virada do ano sem ter por companhia uma garrafa de champanhe é começar o ano com uma sensação de ausência. E o ano não pode começar com faltas. Com saudades sim, mas com faltas nunca.

Faltam poucos minutos para a meia-noite. Champanhes se espalham em milhões de mãos. As garrafas suam frio. Não importa a marca, se é champanhe vagabundo ou se é fruto das melhores vinhas da França. O que interessa são as bolhas. Todos se voltam para o vidro. Quando a garrafa começa a ser agitada os sonhos nascem em borbulhas. Amor, paz, alegria, dinheiro... Cito de forma geral, todavia há sempre aquele sonho mais íntimo. Mesmo se a garrafa está em uma só mão, os olhos que a rodeiam se enchem de borbulhas. E se houver alguma lágrima, não estranhe, pode ser algum sonho que verte prematuro.

Os sonhos que não se realizaram no ano que se acaba morrem na desilusão de uma garrafa vazia e renascem em novas borbulhas. Ops, os sonhos não morrem, apenas não obedecem ao nosso tempo. Não adianta se cobrar se eles não aconteceram e se dar ao desânimo. O instante exato deles ocorrem, talvez não coincida com a nossa, costumeira, ansiedade. Sonhos também são feitos de esperas. E minutos antes do estouro, simples desejos ou milagres parecem mais perto de nós. Nós, na doce clausura de um champanhe.

Contagem regressiva. Ninguém mais pensa no passado, somos esperança. 10...9...8... Os dedos começam mover a rolha... 7...6...5... A garrafa é agitada pela última vez 4...3...2... Todos os olhos fazem parte do champanhe... 1...0...!!! A rolha estoura e o líquido espuma nas taças. Nas taças dos nossos olhos. É como se nos molhássemos no que diz aquela bebida. Os sonhos e os aplausos. As borbulhas, enfim, ganham liberdade e as promessas estão em condições de se tornarem possíveis. Os sonhos se encontram com a realidade. E ao tomar o champanhe, sentimos o sabor de cada sonho nas borbulhas. Passamos a vivê-lo(s), de forma intensa, numa dependência que não dá para explicar. Nesse instante a borbulha não mais se resume a uma promessa na garrafa de champanhe e sim a um desejo num cálice de sangue.

A borbulha fria e o sangue cálido. Um choque térmico que retira os sonhos do estado de dormência (se é que dormem um dia) para fazer parte da vida de um ano que nasce entre sonhos brindados. No brinde, os sonhos se encontram e surgimos por inteiro nas taças que os derramam. Taças que mesmo quando vazias (mais tarde), ainda guardam um aroma que lembra champanhe, que lembra sonhos e que nos lembra, um pouco.


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