Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
Agora eu era o herói

O sol, mais amarelo do que de costume, caía sobre as costas envoltas numa bandeira do Brasil. O prenúncio de um pôr-do-sol se dava num pedaço de pano rasgado, desbotado, suado. A bandeira cobria as costas calejadas de um corpo sem identidade, certidão de nascimento, título de eleitor, contracheque. Era apenas um corpo que tropeçava em sua vida tão torta quão as pernas de Garrincha.

Podia ser Ronaldo, Roberto, Lúcio, Émerson, Adriano. Mas era apenas um sem nome acompanhado de dois cachorros magricelas, Ponta-esquerda e Centro-avante, em dia de Brasil e França. Que importava os acordos comerciais, diplomáticos, poéticos entre os dois países? Naquele dia, o que aquele brasileiro mais queria era acabar com a França através das pedaladas de um menino, do passe mágico de um gaúcho e do chute de um fenômeno. Podia ser 1x0 magro. Bastava uma vitória para vomitar a final de 1998. Nem sua condição de mendigo o envergonhava mais do que aquela derrota.

Desta vez não havia com o que se preocupar. Em qualquer banca de jogo do bicho, era Brasil na cabeça. E aquele torcedor sem torcida, fez questão de caprichar. Chegou logo cedo num bar com televisão. Acomodou seus dramas num canto, pediu uma porção de torresmo e ficou na companhia de Galvão Bueno. Era só esperar. Em seus pensamentos, um balé de ilusões. Depois de quase 90 minutos de sufoco, entraria em campo, driblaria um, dois, três, deixaria o goleiro caído no chão e estufaria as redes. Sonho de criança.

Quem sabe assim, herói de Copa do Mundo, sua vida deixaria de ser torta. Uma estrela não precisa abandonar a mãe porque ela o obriga a vender chicletes no sinal. Uma estrela não precisa morar na rua, colecionando marcas de fome, frio e violência. Uma estrela não precisa fazer embaixadinha em cruzamentos, portas de shoppings, praças em troca de moedas. Uma estrela não precisa se preocupar se vai amanhecer amanhã. Uma estrela só precisa brilhar. E brilhar, em feitio de estrela, aquele brasileiro sabia como ninguém.

Dava show onde se apresentasse. Com sua bola de capotão, fazia miséria e era aplaudido como rei. Era Pelé. Mas aplausos não enchiam sua barriga. Nunca teve a sorte de sair de uma pelada para um time. Vivia fora dos grandes palcos. Mas nem a várzea o aceitava mais. Quem queria jogar com um mendigo sujo e fedorento? Quem acreditaria que ele era o melhor do mundo? Ele era só mais uma figurinha no álbum dos talentos não descobertos. Mas isso não era importante. Importante era o Brasil ganhar da França.

Bandeira do Brasil nas costas, camisa canarinho surrada no peito e toda a confiança que nunca teve em si depositada na seleção. Como o pior dos mendigos, teria que se contentar com a alegria dos outros. Mendigar felicidade aos fenômenos, aos imperadores, aos gaúchos. Afinal, sua vida não mudaria em nada com a vitória. Não ganharia taça, prêmio, dinheiro, festa, aplausos, abraços... Ia ser o mesmo mendigo de sempre. Mas era tomado por um sentimento maior. A paixão pelo futebol aliada a um patriotismo ridículo. Um poeta português já dizia que todas as cartas de amor são ridículas. E, se soubesse escrever, os sentimentos daquele mendigo escreveriam cartas e mais cartas de um amor ridículo ao Brasil de chuteiras.

O botequim ganha uma gente que afasta o mendigo das proximidades da televisão. Mal dava pra ele ver, entre tantas cabeças, a dificuldade do jogo. A tensão lhe fazia virar seguidas branquinhas. Os dentes mastigavam torresmos como quem quisesse mastigar a bola. Os torcedores gritavam, xingavam e aquele mendigo ia ficando quieto quieto quieto... numa solidão... num abismo... num desespero calado. Um francês, maestro da bola, tomava conta do jogo e dos olhos, cegos de tristeza, daquele mendigo.

Gol da França, lágrimas do mendigo. Passes errados, bolas perdidas, falta de vontade... Branquinhas e mais branquinhas. Faltando 10 minutos para o fim do jogo, Parreira chama Robinho para entrar em campo. O mendigo cospe um grito: quem vai entrar sou eu! Leva as mãos ao chão do bar, faz o sinal da cruz e, no seu conto de fada, pisa no gramado. Logo no primeiro lance com a bola nos pés, fixa os olhos no gol francês, ginga pra lá, balança pra cá e chuta com toda a força. A televisão se estilhaça.

O mendigo sai pela rua gritando gol com a bandeira do Brasil nos braços, seguido pelos cachorros. Entre socos, latidos, pontapés, gritos e sirenes aquele mendigo corre como o mais feliz dos brasileiros. Afinal agora ele era o herói. O herói de um Brasil de mentira.

Observação do autor: Escrito depois da eliminação da seleção brasileira pela francesa na Copa do Mundo de 2006.


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar