Daniel Campos

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A mulher que passa cantando coisas de amor

Quem não se lembra dos versos da música A Banda? Versos que falam de coisas simples. Feche os olhos e se deixe só por alguns instantes (como há tempos não se deixa). As bandinhas a desfilar pelas ruas da cidade, sem maiores pretensões ou contentamentos. A cidade se enfeitava para vê-la passar. E tinha lá a sua beleza. E existia algo em comum - a banda. Fruto de uma espécie de magia, ela, a banda, seduzia os transeuntes com marchas que falavam coisas de amor.

Mas as bandas calaram as cidades de ruas pacatas e coretos na praça da matriz. As ruas tranqüilas se transformaram em ruas de hemorragia e as praças se divorciaram dos coretos. A cidade tomou um drinque qualquer e nunca mais se deu às alucinações. Ninguém pára mais para ouvir, ver e dar passagem para os artistas comuns. Ninguém mais fica à toa. O ritmo é sempre o mesmo. As coisas simples, as canções que falavam de amor, uma porção de cada um e outras singularidades ficaram esquecidas em alguma lembrança. Cada lembrança no seu canto, no seu passo.

No entanto há elementos da banda que ganharam um corpo feito de partituras eternas. As melodias, as letras, o romantismo... e isso não se contesta. O que dizer da mulher que passa e faz com que tudo o que a envolve pare, de forma imediata e espontânea? A mulher que passa se veste de silêncio aos ouvidos mais despercebidos. Só aos mais despercebidos. Ao fundo do seu passar, escorre baixinho, de forma tímida, o som de uma banda. A música parece sorver, naturalmente, da pele da mulher que passa. Pode ser delírio, piegas, tolice... Não importa. Quando ela passa, a rosa triste e fechada desprende suas pétalas da película de uma fotografia.

Ela passa com os cabelos riscados de sol. E quantos os tons do sol? O sol e suas sombras e suas quebras e suas predileções. O sol que se derrama. O sol que se deita. O sol que se inunda de outros sóis e depois mareja em ondas pequenas e infindas. O sol como um saveiro sem rumo, sem bússolas ou constelações. Saveiro que navega pelo simples prazer de fazer parte daquele mar. Mar feito de paralelepípedos.

A mulher que passa com os olhos desabotoados, imersos em algo que não se descobre o quê, tem tanto a contar. Nos olhos da mulher que passa há faroleiros contando vantagem, homens sérios contando dinheiro, namoradas contando estrelas. Quem sabe, a mulher que passa nem perceba que provoca essa fissura no cotidiano e que a banda toca para (e só para) ela. É como se a mulher que passa rasgasse as cortinas que cobrem todas as janelas que velam as ruas só para aquietar sua espera. E quando as cortinas se acabam, a mulher que passa deixa as janelas e segue pelas ruas entregues aos domingos.

Não... A mulher que passa não é mais uma personagem de Chico Buarque, nem mais uma ilusão à paisana. A mulher que passa é algo que não se encontra em livros ou experiências passadas. Ela passa com ares de modernidade e deixa em nossa boca o gosto, amargo ou doce, dos sonhos que ficaram perdidos pelo caminho. Ela deixa o passado novamente a nossa mercê. Com ela, surge a sensação de que eles, os sonhos, nunca se afastaram um milímetro sequer do nosso útero imaginário.
A mulher que passa tem um estilo que é só seu. Muitas são as mulheres que passam, mas são poucas as que se fazem mulheres na dosagem certa de feminilidade. Os traços da mulher que passa são desenhos que iremos encontrar em nossas gavetas, em papéis amarelados e bem guardados. É como se ela fosse a realização de uma profecia que sempre carregamos conosco. É impossível não recordar ou fazer uma busca interior, quando se está diante das silhuetas da mulher que passa melódica e dramática. Por mais que doa, por mais que cause sofrimento, por mais eufórica que seja, a mulher que passa nos redimensiona, estende-nos ao infinito e nos transforma no que realmente queríamos ser.

A mulher que passa com um jeito, levemente, esquecido guarda poesia em sua saliva. As letras e as cifras habitam a boca da mulher que passa. Para vivê-las ou revivê-las, basta tocar os lábios da mulher que passa. Lábios discretos e sempre presentes. A magia das bandas renasce nos lábios da mulher que passa cantando coisas de amor.


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