A tarde em um porta-retrato
Devagar, a tarde desliza nos confins do horizonte e sem atrasos, surge você. Surge sem escândalos, sem avisos, sem maiores explicações. Você (apenas) surge e a tarde se encarrega de acontecer. Você (apenas) surge e a tarde deixa de lado o que estava por fazer. Você (apenas) surge e a tarde passa a depender dos seus cabelos.
Se surgir com os cabelos soltos, as canções irão adormecer, lentamente, nos fios da ilusão. Canções inéditas. Canções de improviso. Canções que duram o tempo do seu passar. Os fios soltos no ar como pinturas abstratas. Os fios soltos no ar como caminhos ainda não descobertos. Os fios soltos no ar como riscos de giz. Pinturas sem nome. Caminhos sem volta. Riscos sem destino. Os fios dos seus cabelos e os fios de um destino ainda não traçado.
Se você surgir com os cabelos soltos, os fios mudarão de tom conforme o seu caminhar. Uma explosão de cores e sombras. Explosões de sol. Sombras de lua. E do encontro entre o sol e a lua nascerá um sorriso. Um sorriso que irá flutuar sustentado pelos fios da imaginação. Fios quase transparentes. Fios quase dolentes. Fios quase poentes. Se os seus cabelos estiverem soltos, será possível medir a distância exata entre o dia e a noite. Fios das cores. Fios das sombras. Os cabelos soltos beliscando seu sorriso numa cena que será reprisada em tantos cinemas entardecidos.
Se, durante a tarde, chover, os relâmpagos vão se esconder nos seus cabelos. E quando o medo passar, as luzes hão de escorrer, mansas e tímidas, pelas suas costas. E se Netuno acordar de mau-humor? E se o horóscopo não estiver a favor? E se a primavera florescer uma dor?... A tarde só irá sorrir se uma promessa ainda estiver guardada nos seus cabelos. Uma promessa não confessável.
Se você surgir com os cabelos soltos, surgirá envolta a um perfume de brisa (por mais que o mar esteja longe). Em seus cabelos, longe perderá o sentido e se tornará uma palavra perdida na areia branca. A mesma areia que ficou marcada pelos seus saltos. Marcas que a maré-cheia não ousou apagar (por maior que fosse o ciúme de Iemanjá). Ciúme dos seus olhares. Ciúme dos seus sorrisos. Ciúme dos seus cabelos.
Mas se, de repente, em uma tarde qualquer, você surgir com os cabelos presos... Quantos momentos irão se casar definitivamente com os fios dos seus cabelos? Quantas esperas morrerão asfixiadas sem achar uma saída? Mas, a magia irá se procriar e os mistérios hão de se revelar antes da primeira estrela (se é que haverá alguma estrela a arranhar os céus). Com os cabelos presos, seus olhos ganharão mais duas ou três dimensões. E cada olhar será para sempre, para sempre mais tarde. Com os cabelos presos, o mundo terá de tomar cuidado com o seu sorriso. Um sorriso, totalmente, descoberto. Um sorriso mais límpido, mais objetivo, mais forte.
Se você surgir com os cabelos presos, as fantasias fugidas dos livros não terão mais onde brincar. Assim, as sereias, sem o mar acastanhado dos seus cabelos, vagarão pelas ruas. Assim, os deuses partirão em busca de outro altar. Assim, a tarde não terá fim enquanto a noite não conseguir deixar o labirinto dos seus cabelos. A noite e seus encantos. A noite e seus acalantos. A noite e seus mantos.
Se você surgir com os cabelos presos, a vida poderá se resumir à falta de limites de uma tarde. E você não quer que a tarde se enclausure em um porta- retrato, quer?
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