Daniel Campos

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A maestrina das tardes

Enquanto as tardes londrinas são marcadas pelo tradicional chá das cinco, as brasileiras são saboreadas com doses diárias de Leda Nagle. E o melhor de tudo é que do lado de cá do Atlântico Sul não há aquele formalismo, aquela frieza, aquela monotonia britânica. O nome desse encontro vespertino já diz que não existe limite para voar ou mergulhar. Sem censura, os dedos de prosa rolam à vontade. Sob a regência de Leda - a maestrina das tardes - surgem típicas rodas de conversa. Em um momento, estamos em frente à televisão, em outro, em rodas de conversa na sala de visita, ao redor do fogão à lenha, na calçada em frente ao portão, no meio da Praça da Matriz, na esquina... Aquele bate-papo tem um quê de ebulição de metrópole e outro de trenzinho caipira que vai passando, vagão a vagão, pelas janelas das nossas retinas.

Devia existir uma lei em que obrigasse o Brasil a parar às quatro da tarde para acompanhar esse bate-papo. Já pensou? O Ministério da Saúde adverte, e o Ministério da Cultura endossa: entardecer sem censura faz bem à mente e ao coração. Além do mais, são doses homeopáticas que devem ser repetidas diariamente. Para quem passou bons anos de modo fiel a esse ritual, de sentar-se diante da telinha ao lado de um caderninho para anotar parte desse diálogo, fica difícil ver o sol morrer sem bebericar um pouco dessa xícara que mistura informação, arte e entretenimento. Ouso dizer que é um dos programas mais poéticos da televisão, afinal a poesia está no cotidiano. E Leda sabe como nenhum outro apresentador esmiuçar o cotidiano valorizando a beleza de seus micro-detalhes.

O ritmo dessa conversa também é diferente de tudo o que tem por ai. Leda deve ter se inspirado na batida de João Gilberto, porque o que vemos, aqui do outro lado, é pura bossa. Aquela roda de bate-papo tem um compasso digno de um barquinho escorrendo pelo azul do mar. E o barquinho vai... E o barquinho vem... E muitas embarcações se encontram nessa festa do sol chamada Leda Nagle. Um dia, venci a timidez e enviei uma poesia minha para lá. Por coincidência, era sobre bossa nova. Por hora, o mundo parou. Ao menos, o meu mundo. Durante o programa, Leda leu o poema para Roberto Menescal. A emoção falou mais forte. Levei uns três dias para voltar a si. Leda possibilitou o meu encontro com um dos mestres da música. Eu e Menescal não nos tornamos amigos por causa disso, mas a sensação de ver minha poesia como parte daquela roda foi "au concur". Por magia ou coisa parecida, os sonhos mais impossíveis, sob a regência daquela maestrina, ficam possíveis.

Tempos depois, fui ao Rio de Janeiro na condição de assessor de imprensa de uma figura da alta-cúpula governista e conheci aquele círculo, aquele cenário e o abraço de uma Leda que já parecia ser de casa. Hoje, por força do trabalho, estou longe da tela da televisão durante as tardes da semana. É uma pena que meus patrões sejam insensíveis à tarde. Achei que minha ausência seria por pouco tempo, mas não pude fazer minha aquela frase - "eu volto, é praticamente uma ameaça" - saída da boca da apresentadora ao chamar o intervalo comercial. No entanto, as tardes de domingo, que já foram de Roberto Carlos e do iê-iê-iê da jovem guarda, hoje são Sem Censura. Não tem o mesmo charme do programa ao vivo, mas como diz a canção do rei, as tardes de domingo são feitas de doces recordações. E nada melhor do que recordar as sinfonias dessa maestrina das tardes chamada Leda Nagle.


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