Daniel Campos

Prosas

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19/09/2008 - Fantasia, alucinação, miragem

Na ponta dos pés e calada, como quem quer aprontar alguma coisa, ela chegou. O relógio, entre voltas e cochilos, marcava três horas da manhã e doze minutos. A escuridão foi o melhor cenário para ela se aproximar sem ser vista. Quando a perceberam, ela já caia solta. Danada como só, pegou todos de surpresa. E o seu sabor foi, antes de tudo, fantasia, alucinação, miragem. E veio trazendo um frescor de camomila. Talvez ela se internasse nos últimos meses entre pés de camomila e agora, despejasse não só o aroma da flor, mas uma candura capaz de suavizar qualquer emoção. Uma candura refrescante, mas de natureza quente. ...
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31/01/2013 - Fantástico

Zanza daqui, zanza dali, eu estou lá. Ninguém pode comigo, ainda não nasceu quem vai me derrubar. Eu tenho em mim o grito do silêncio, a sombra da luz, o frio do fogo. Esfaqueio e serpenteio com a mesma facilidade. Dou nó em pingo d’água, dobro sinos e viro a saudade pelo avesso. Tenho olhos e ouvidos espalhados por todo lugar. Sou o demônio que tira gemidos da deusa. Sou o anjo que faz o capeta confessar seus pecados. Não tenho parada, morada, estrada. Estou sempre rodando, como cata-vento e roda-gigante. ...
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24/04/2008 - Farta de apelação, a terra tremeu

Ninguém agüentava mais ser bombardeado pela falta de bom senso da televisão aberta, que nos últimos dias, obrigou-nos a engolir uma programação única: o caso Isabella. Vinte e quatro horas por dia a telinha nos mostrava imagens da menina, dos suspeitos, do passo a passo do crime. A notícia, com uma vírgula ou outra a mais ou a menos, se repetia em vários canais e, até mesmo, nos noticiários de uma mesma emissora.

Fizeram do caso, que é uma tragédia de proporções incalculáveis, um circo. Eu lamento profundamente a morte da menina, me revolto com a crueldade humana, mas não quero ser "macaca de auditório" para ficar na poltrona acompanhando milímetro a milímetro do desenrolar desse caso. Não quero compactuar com a teoria: explora-se a dor e banaliza-se o crime. Está claro a tentativa da televisão em transformar o fato em uma novela apelativa, que nos enrola em capítulos mil, só pelo bel prazer de aumentar a audiência....
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27/12/2008 - Farvel

Estou na Groenlândia. Aqui, os blocos de gelo rugem. É difícil diferenciar o que é gelo e o que é urso. O gelo é branco. O urso é branco. O tempo é branco. E tudo é tão frio quão vazio. Por aqui não passa trem, não há florada de ipê, não tem fogueira de São João. No Ártico, o dia parece não acabar nunca. E a noite é um sonho e um pesadelo. E os dinamarqueses ainda tiveram coragem de chamar essa branquidão de terra verde. Onde estão as árvores? Onde estão as plantações? Onde estão as ervas daninhas? ...
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13/11/2012 - Favela

Ocupem a favela, mas não ocupem os sonhos de liberdade das crianças. Pacifiquem a favela, mas não pacifiquem a guerra entre amor e solidão que move os corações. Invadam a favela, mas não invadam os olhos da moça que se enchem das estrelas que salpicam seu telhado de zinco. Coloquem regras na favela, mas não regrem os limites dos barracos que, lado a lado, alcançam o céu. Modernizem a favela, mas não descaracterizem a sua essência.

Reformem a favela, mas não reformem o pensamento, a atitude, o ativismo de quem dá identidade à favela. Reescrevam a história da favela, mas não joguem fora os sonhos, as lágrimas, os sabores, os beijos, os suores, os abraços. Reorganizem a favela, mas não mexam na organização das gavetas, dos desejos, dos afazeres de cada um. Façam turismo na favela, mas não acabem com os mistérios. Levem grifes para a favela, mas respeitem a grife que é a própria favela.


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29/11/2012 - Favor esquecer

Esqueça o meu nome, esqueça o meu rosto, esqueça a minha voz. Esqueça que eu falo a sua língua. Esqueça a dor que parte de mim. Esqueça o meu verso e todas as minhas rimas. Esqueça o meu caminho. Esqueça aquela taça de vinho. Esqueça da minha casa na lua. Esqueça dos meus problemas, dos meus dilemas, dos meus teoremas. Esqueça meus planos, meus enganos, meus 200 anos. Esqueça meus vôos sobre a sua janela. Esqueça minhas fotografias, meus pedidos, minhas fantasias. Esqueça meu santo, meus medos, meu canto. ...
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30/11/2012 - Faz de conta nº 3

Faz de conta que o mundo mudou e, que a vida girou e que o barco voltou. Faz de conta que hoje é o que há de melhor para se viver. Faz de conta que a sorte de tanto andar tonta pode cair aos seus pés. Faz de conta que a gente não vai morrer. Faz de conta que a fantasia está liberada. Faz de conta que o proibido é permitido. Faz de conta que a mocinha não se apaixonou pelo bandido. Faz de conta que há uma recompensa no final da estrada. Faz de conta que tudo leva à criatura amada.

Faz de conta que tanto dá para ir mais alto quanto mergulhar mais fundo. Faz de conta que deus não é vagabundo por ter descansado depois de seis dias de criação. Faz de conta que não doeu. Faz de conta que o que é meu é seu. Faz de conta que nossa relação com o calendário não é a mesma do peixe com o aquário. Faz de conta que o parafuso não nasceu pra porca. Faz de conta que a linha do horizonte não é torta. Faz de conta que não se importa com a saudade que lhe enforca. ...
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22/11/2009 - Faz sentido o amor?

O amor não faz sentido, contudo, usa e abusa de todos os sentidos. O amor não é palpável, mas vivem tentando agarrá-lo e, sobretudo, prendê-lo. O amor só existe quando livre, interagindo com o meio, porém, dizem que ele fica confinado no coração. O amor está acima de qualquer condição climática, mas insistem em associá-lo aos dias frios e chuvosos. O amor cura e, ao mesmo tempo, causa febre, dor, depressão, estresse e outros males curáveis somente com... amor.

O amor é puro, mas precisa jogar para sobreviver. O amor é inocente, porém, está sempre sendo acusado de uma coisa ou outra. O amor é eterno, no entanto morre na maioria das vezes. O amor não tem cheiro, mas lhe são atribuídos diversos perfumes. O amor é símbolo de sentimento concreto e maduro, no entanto, morre de ciúme. O amor é infinito, indestrutível, incorruptível, mas se apresenta quase sempre com um rostinho frágil e indefeso....
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Faz-de-conta nº 2


Queria que chovesse chocolate e que a enxurrada me levasse num barco de papel. Queria que telefone celular cantasse como passarinho, num tom miudinho. Queria que jornal fosse feito de historinhas de ninar. Queria que o trabalho fosse só pra gente grande (e que essa gente grande trabalhasse no que queria ser quando crescesse). Queria que carro tivesse asas e que avião chegasse até os anéis de Saturno. Queria que existisse perfume de bolo de fubá com café de coador de pano.

Queria que toda casa fosse construída nos galhos da árvore e que os cachorros dessem cambalhotas como no cinema. Queria que a vida fosse cor de rosa, azul, verde... e não essa coisa cinzenta que anda por ai. Queria que os heróis e as mocinhas saíssem dos livros e fossem viver seus romances lá na praça. Queria que a fome não passasse de mais uma das tantas abstrações que habitam os discursos políticos. Queria que os gansos passassem no meio da rua, só pra acalmar o trânsito. ...
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29/08/2015 - Fazendo amanhecer

O que é, o que é essa força, essa paz, esse amor? É a luz de um preto-velho que vem chegando de uma estrela que não se enxerga daqui. Chega e clareia tudo, ilumina por dentro, toca fundo no sentimento. Cura por meio do amor e traz à tona as lágrimas mais fundas, afastando o peso que nos deixa corcunda, limpando-nos de todas as lástimas. É leve como vento e intenso como tempestade, mas é manso feito chuvisqueiro e forte tal o broto que rompe pela luz um tempo de clausura.

É Pai João, é Mãe Tildes, é Pai Zambô, é Vovó Maria Conga, é Vovô Nazário, é Vovó Marilu, é Vovô Agripino, é Vovó Benedita, é Pai Joaquim, é Mãe Laura, é Pai José, é Mãe Rosário, é Pai Crispim. É preto e preta velhos da Mata, da Cachoeira, da Pedreira, de Aruanda, do Congo, de Guiné, da Caridade, das Almas, de Enoque. São mentores, são professores, são amores incondicionais que ao vir deixam um rastro de luz. São de outros planos e conhecem tão bem nossos planos. Estão a anos-luz de nós e ao mesmo tempo tão perto se doando e nos amando de uma forma que foge à incompreensão humana. ...
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