Daniel Campos

Prosas

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22/08/2015 - Longe dos seus braços

Longe dos seus braços eu sou pássaro sem ninho, caracol sem casa, abelha sem favo. Longe dos seus braços sou bebê sem ventre, violão sem corda, jardim sem flor. Longe dos seus braços, sou estrada sem chão, cana sem açúcar, cigarra sem chuva. Longe dos seus braços, sou pimenta sem ardor, buquê sem cheiro, casamento sem amor. Longe dos seus braços, sou carro sem roda, nuvem sem céu, veleiro sem vento. Longe dos seus braços, sou mar sem onda, raio sem trovão, cavalo sem monta.


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21/08/2015 - 50 anos de jovem guarda

Meu pai era menino do interior de um tempo de tantos nascimentos e renascimentos. Menino das peladas de dribles desconcertantes e dos gibis que passavam de mão em mão. E na televisão que meu pai via na casa de um vizinho, ainda com imagem tremida e cores resumidas ao preto e branco, nascia, em um programa de auditório, a Jovem Guarda. O tremendão, o rei e a ternurinha em meio a um tanto de músicos e cantores e grupos numa batida diferente do yê-yê-yê. As tardes de domingo de meu pai e de tantos outros jovens, de corpo ou de espírito, nunca mais foram os mesmos. E o vocabulário deu lugar a "broto", “papo-firme”, "carango" e a "é uma brasa, mora?". A moda mudou, a forma de falar de amor mudou, o mundo ganhou em espontaneidade e liberdade. Cinquenta anos depois não há mais jovem guarda nas tardes de domingo da televisão, mas o ritmo da juventude continua inspirando e levando vidas. Assim como muitos os que assistiram esse nascimento, como meu pai, ficaram marcados por uma espécie de elixir da juventude quando provaram o mais jovem de todos os tempos e ritmos – a jovem guarda.


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20/08/2015 - Reza o beijo

Quando você voltar para mim não se esqueça de trazer todos os beijos guardados. Traga de volta à boca o beijo que amarelou, que enferrujou, que amassou, que rasgou, que desbotou, que embolorou... Beijos passados que não passaram. Beijos perdidos que se encontraram. Beijos dormidos, esquecidos, banidos, proibidos agora são permitidos. Beija-me. Beija-me numa ladainha de beijos, numa procissão de beijos, num confessionário de beijos. Reza o beijo. Que cada beijo se reavive no próprio desejo de ser beijo sem mais ensejos. ...
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19/08/2015 - Atreva-se e viva!

Nenhum de nós sobrará para contar o que fomos e ainda somos. O mundo se abrirá e nos engolirá de uma só vez. Não existirá mais talvez, apenas a certeza de que tudo acabou. Seremos extintos pela nossa incompreensão. A partir do momento em que deixamos de ser humanos quebramos as regras do jogo. Até mesmo aqueles que já foram pássaro, pedra e árvore serão tragados pelo fim. Nada restará por inteiro. E mais dia menos dia até mesmo nossos pedaços de nós mesmos desaparecerão. Nossos rastros se apagarão. A natureza poderá voltar a reinar sem maiores interferências. E toda ciência de nada adiantará. Uns ainda se guiarão pela fé rumo a outros mundos, mas a maioria sucumbirá à escuridão. E quem acenderá as velas? Olha, olha do tudo a janela, pois daqui a pouco poderá não existir mais mundo a ser visto, cheirado, ouvido, quisto. Atreva-se e viva!


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18/08/2015 - Viramento

Vira mais uma de amor. Estamos a oito mil rotações por minuto. Tudo gira. E a cada beijo eu sinto parar no alto da roda gigante de um parque iluminado de lua cheia. Rodeia-me enquanto rodo o seu corpo no meu. Sou seu catavento. Roda, roda, roda seus olhos nos meus olhos enquanto nossas peles misturam seus óleos. Rodopia sobre mim. Faz viramento de mim. E vamos nos virando e nos amando e nos encontrando nas voltas desse carrossel. Faz seu circulador em mim. Corrupia-me com seus passos, braços, traços, percalços, estardalhaços, compassos. Volteia-me com suas voltas sem volta virando sempre mais uma de amor.


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17/08/2015 - Carne de cajá

Minha alma anda amarelo cajá como peito de sabiá. Meus braços têm traços de todos os espinhos que enfrentei para chegar às rosas que tanto beijei. Eu ando rico de natureza, pois todas as forças andam confluindo em mim de um jeito pra lá de tupiniquim. E eu, como passarim, esqueci do meu peso físico e cármico e voei longe, voei alto, voei pros braços de quem me chamou de seu. Por Deus, que as estrelas se apaguem todas de uma vez para que eu não ache o caminho de volta e fique perdido nesse amor doído. Deve estar inscrito em alguma escritura esquecida que amor que não dói não é amor. Minha alma anda ensolarada, guardado todo o seu exotismo, como carne de cajá. Quem há de ter coragem de provar? Que venha logo, que venha logo, pois se pode acabar.


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10/08/2015 - Frutaria

Morango com tango. Manga que sangra. Kiwi de bem-te-vi. Carambola que embola. Uva de chuva. Goiaba com abracadabra. Uvaia de saia. Laranja de franja. Caju sem frufru. Graviola da viola. Pera na ladeira. Maçã do amanhã. Tamarindo que lindo. Lima com rima. Tangerina de menina. Cupuaçu Hindu. Romã do Vietnã. Cereja quem beija. Amora que chora. Melão em procissão. Melancia que mia. Abacaxi que ri. Ingá que assovia.


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09/08/2015 - Garimpagem divina

A pedra da criação foi rompida pela mão de um deus garimpeiro que se atreveu a romper a vida petrificada. O garimpo da curiosidade levou à abertura da caixa que antecede Pandora. Deus só se fez deus ao abrir a caixa, antes era apenas um viajante do espaço, um solitário ser em busca de suas completudes. E o homem, em retribuição à liberdade, acabou adorando eternamente o deus que em sua garimpagem de amor criou o mundo. Deus foi preenchido pela humanidade, que, mesmo inconscientemente, procuram deus a todo instante para continuar sendo carne e não pedra. E deus segue garimpando para não perder os pedaços de gente que acabaram se misturando ao seu ser supremo.


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08/08/2015 - Céu limpo

Longe de todos os espaços estrelados e nublados há um céu limpo sem nuvem ou estrela. Um céu que de tão vazio chega a doer em sua própria e infinita solidão. Um céu tão liso como se fosse de vidro ou de papel de seda, dando a impressão de que irá se quebrar ou rasgar a qualquer momento em razão de tamanha perfeição. Um céu sem manchas de balão, de pássaro, de borboleta, de pipa, de avião. Um céu como se obra de feitiço não dado a rebuliços. Sua angústia é sua nitidez. E quando esse céu é duplo, contido em dois olhares, a lágrima cai para dentro, pois não pode turvar o que nasceu para ser perfeito.


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07/08/2015 - Casa do rio

Tem uma casa na beira do rio cuja correnteza tentou e retentou, mas ainda não levou. A casa frágil e tímida parece ser para toda a vida. É casa de liga. Está ligada ao veio daquele rio, como se fosse morada daqueles que tem um pé na terra e outro na água. A casa é anzol, é isca, é prenda ao rio que passa a cortejá-la num amor impossível. Muitas vezes as águas já chegaram a bater naquelas paredes, entrar pelos cômodos, mas nada fora disso. Como se cada qual tivesse o seu lugar no mesmo espaço, casa e rio vão passando os anos e ficando cada vez mais íntimos, porém, respeitando suas individualidades. A casa é dura na queda e o rio, por sua vez, continua passando sem ter casa e dona, pois não existe o rio da casa, mas a casa do rio.


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