Daniel Campos

Prosas

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06/08/2010 - Capítulo 44

O corpo de Sebastian, deitado sobre a cama de seu apartamento, está frio e pálido. Passou por momentos de agitação, chegou a falar frases não compreendidas, com se estivesse vivendo um pesadelo, e agora está quase sem vida naquele quarto do sexto andar. Não há ninguém em casa para testemunhar aquela situação. E se houvesse de nada valeriam possíveis tentativas de ajuda. O retorno de seu perispírito para o corpo, neste momento, é um fato quase impossível de ocorrer, já que ele está preso em outro plano....
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06/08/2010 - Cem dias sem chuva

Você sabe o que é ficar cem dias sem ouvir o barulho da chuva? É algo enlouquecedor para quem tomou tantos banhos de chuva como eu. Cem dias sem ouvir aqueles pingos se espatifando contra telhas e calhas. Cem dias sem ouvir os trovões ecoando ao fundo. Cem dias sem ouvir o vento anunciando e carregando a chuva. Cem dias sem escutar o canto dos pássaros saudando a chuvarada. Cem dias sem dormir embalado pelo cair da chuva.

Você sabe o que é ficar cem dias sem sentir o perfume da chuva? É algo assustador para quem acostumou a se impregnar da fragrância da chuva como eu. Cem dias sem sentir aquele cheiro de mato molhado correndo pelo ar. Cem dias sem se deparar com aquele cheiro de poeira subindo ao ser alvejada pelos primeiros pingos. Cem dias sem sentir a essência da chuva se misturando à pele da mulher amada. Cem dias sem ter o perfume da chuva mexendo com os sentidos da gente. ...
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05/08/2010 - Cidade sitiada

Pelos cantos dessa cidade há criaturas sem juízo. Há nascimentos doloridos, vidas rasgando a carne como as pontas de um siso. Há um excesso de indecisos e de sentimentos imprecisos. Há um riso despropositado, sem razão de existir. E há muito prejuízo nisso tudo. A vontade maior é a de abandonar essa cidade, rumar para longe, remar para oceanos de tesouros distantes, para as montanhas dos monges, para o reino dos gigantes dos pés de feijão e das galinhas dos ovos de ouro.

Por essa cidade marcada pela tragédia, é preciso inventar um novo romantismo. Algo que fuja do cinismo dos falsos corações que dizem que amam e mantém o amor preso nos grilhões. Canalhas. Há uma horda de canalhas povoando as cidades de Deus e do Demônio. Há uma ilusão brotando em cada esquina. Há mentiras caindo do céu. Há um levante de ignorantes tomando os ares. Há mulheres vivendo de alface. Há pelo menos um bandido em seu encalce. ...
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04/08/2010 - O castelo, o curió e o pé de marmelo

Ao lado da minha casa tem um pé de marmelo. E numa das galhas desta árvore tem um castelo. É ali que faço a minha imaginação voar de volta aos tempos medievais. Depois de passar pela ponte levadiça, eu percorro calabouços e torres, escudos e brasões, costumes e lendas. Tudo isso ao canto de um curió que insiste em pousar no meu pé de marmelo. Porém, eu confesso que a cantoria só dá mais charme ao lugar. Não me importo em dividir a vista com o pássaro. Afinal, ele é a mascote da cavalaria. Sir curió, o paraninfo da minha fantasia. ...
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03/08/2010 - Anti-Deus

O homem que vai, a mulher que trai, o santo que cai. Ginga daqui, pinga dali, a cruz vira de ponta cabeça. As interpretações do evangelho e o prazer do pecador. O destemor de Deus. A sede de vingança. A loucura e a matança. A criança nascida do fogo. O uivo do lobo. O estouro da pólvora, a dor da fome, o filho sem nome. O pessimista, o egoísta, o vigarista. A paixão ganhando a lâmina, o corte e a ponta de uma faca, de uma espada. É a mula que empaca. É a mão que maltrata.

O desejo de matar e de ser morto. O caminho torto. O ponto solto. A judiação e a falta de perdão. O revés da compaixão. O arroto e o aborto. A vela da escuridão. As chibatadas e as adagas cortando e transpassando o peito alheio. A falta de freio. O braço e o reio. O fim antes do meio. Os amores bandidos, caídos, esquecidos, subnutridos, desvalidos, perdidos, desmerecidos, falidos, não socorridos, não vividos, não correspondidos... ...
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03/08/2010 - Capítulo 43

Sebastian caminha rezando e engolido cada vez mais pela escuridão. Ele não sabe o que o aguarda, apenas sente necessidade de caminhar. A única luz que existe ali é a dele, um ser humano. Uma luz bem mais fraca do que a dos samaritanos, no entanto, capaz de chamar a atenção de quem vive imerso e, até mesmo, submerso num ambiente sombrio.

O nível de vibração alcançado pelo promotor não permite que ele seja ajudado por Klaus ou por outros espíritos iluminados. Mais do que nunca, está sozinho. E isso mexe com seus ânimos. A sensação é a de que a cada novo passo está mais próximo da morte. Porém, em alguns casos, a morte não é o fim, mas o começo da tormenta. ...
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02/08/2010 - Você com você

Faça as pazes consigo mesmo. Sorria para você quando ficar frente a frente com um espelho. Convide você para sair com você. Sacie o seu desejo com todo gosto. Envie cartas, flores e caixas de bombom para o seu endereço. Elogie-se sempre que possível. Pense em você como gostaria que pensassem em você. Ame-se como ama alguém, ou vice-versa. Não escute as bobagens que dizem de você por aí. Lave a alma ao menos uma vez por semana. Não tenha medo de encarar seus sentimentos e pensamentos.

Sonhe e tente viver os seus próprios sonhos. Ofereça-se uma música. Levante um brinde a você. Tenho orgulho dos seus feitos. Valorize o seu passado, a sua caminhada. Tenha respeito pela sua missão. Pergunte sempre o que você pode fazer para lhe fazer mais feliz. Não se sobrecarregue demais. Lembre-se que é sempre possível superar os limites que impõem a você. Não se perturbe com pormenores. Porém, saiba redimensionar os detalhes que lhe fazem bem. ...
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01/08/2010 - Niágaras

Quando uma uva niágara explodiu seu perfume adocicado em minha boca fui tragado para os confins do meu baú de lembranças, no qual vou me misturando em pedaços de adulto, velho e criança. E, ali, caído em meio a mundos abstratos e fundos concretos, encontrei um dos meus doces prediletos. Um doce que não é feito em panelas de cobre, mas em videiras que cobrem uma parte do céu por meio de suas parreiras. O doce diferente e inocente das uvas niágara que chegavam em casa em caixas de madeira trazidas por meu pai....
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31/07/2010 - Nêga

Nêga, hoje a nossa lua amanheceu tão negra, como que marcada pelo batom da escuridão. Nêga, deixa-me entrar no seu barracão e ver onde você guarda o nosso amor, por debaixo das fantasias e alegorias de crepom. Nêga, sabe que meu coração pertence a sua escola e bate no compasso do seu tamborim. Nêga, eu quero o seu amor negro. Nêga, desejo toda essa folia negra que bole pelo seu corpo num quebrado sem fim. Tem dó de mim, ò nêga, e coloca mais água no seu feijão. Eu lhe sondo no jardim das rosas negras, ò nêga, só para lhe oferecer meu amor num samba-botão, numa flor-canção. Da Portela à Estação Primeira de Mangueira, eu me rendo aos seus passos e abraços negros de domingo à quarta-feira de cinzas e carregos. ...
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30/07/2010 - Peras ao açafrão

Seus olhos são como duas peras ao açafrão, feitos a partir de mel, vinho e limão. Olhos de fervura e caudalosos, ideais para sempre degustados a colheradas. E eu, cada vez mais, tento fazer das minhas palavras espátulas só para retirar, com todo cuidado, a cada novo encontro, um pouco mais dos seus olhares. Toda a maciez e o sabor das peras, com uma coloração única, e um frescor de hortelã, colocados em olhares que alteram o meu metabolismo de uma forma que nem a química ou a física podem explicar. ...
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