Daniel Campos

Prosas

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06/03/2013 - A dor da perfeição

O dia amanheceu sem manchas ou borrões. Pela imensidão do céu azul não se encontrava marca alguma de nascença. Um desses céus de novela, sem nuvem, sem névoa, sem sombra, sem cisco... Nada de moscas, gafanhotos ou outros insetos. Nem mesmo os pássaros se atreviam a voar naquele céu criado numa espécie de photoshop divino. Os olhos não conseguiam avistar nem mesmo balões coloridos ou aviões. Astronautas, pilotos e aventureiros ficaram de fora.

Um céu quieto, sem ruídos ou ópera. Um céu sem sinal de anjos ou deuses. Um céu vibrante, intenso e exuberante. Um céu para turista algum botar defeito. Um céu belo e doído em sua infinitude. A perfeição dói. Aquele céu plástico, corrido, sem pinceladas, causava um incomodo nos olhares. Difícil olhá-lo de forma aberta, sem piscar ou chorar. Impossível explorar as belezas e mistérios desse céu que nos apequena em nossos defeitos. ...
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05/03/2013 - Olhos de bromélias

Ela tem olhos de bromélias. Olhos que acumulam lágrimas e nas estiagens da felicidade alimentam-se da própria tristeza. Olhos de bromélias, selvagens, mas com facilidade de serem domesticados. Olhos amarelos, rosas, vinhos, roxos, vermelhos. Olhos de bromélias, apaixonantes e perigosos como pétalas de espinhos. Olhos longos e estreitos, mas extremamente macios, como as folhas dessa planta que dá de ombros para a seca. Olhos de bromélias abertos como um coração comestível. Olhos tropicais e exóticos. Olhos hospedeiros por natureza, criadouros de ilusão. Olhos que abusam de sua inflorescência. ...
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04/03/2013 - Conclave

Vote num papa negro. Num papa com traços indígenas. Num papa japonês. Vote num papa mestiço. Num papa tupiniquim. Num papa abaixo da linha do equador. Vote num papa pop. Num papa rock. Num passa bossa nova. Vote num papa de fé. Num papa de santo. Num papa que acredita em espíritos. Vote num papa mulher.

Vote num papa que canta, que dança, que levanta multidões. Vote num papa sem burocracia. Num papa zodiacal. Num papa de alto astral. Num papa fértil de fantasia. Num papa que vá além da bíblia. Num papa que doe o ouro do Vaticano aos pobres. Num papa que esteja sempre por perto. Num papa que deixe a Praça de São Pedro para peregrinar pelos desertos. ...
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03/03/2013 - São Caetano Veloso

Se eu fosse papa, santificaria, em caráter de urgência urgentíssima, Caetano Veloso. Um santo vestido com roupas de tropicália. Sua oração terminaria da seguinte forma: “amém, ou não”. Um santo de Odara, que pensa e reza pelo Haiti que existe dentro de cada um de nós. Um ser coroado de sensibilidade e consagrado à emoção. Caetano, o último santo romântico. O santo e a tigresa, o santo sem tradução, o santo que cruza a Ipiranga com a São João. Se cantar é orar duas vezes, caetanear é estar duas mil vezes mais próximo de deus. ...
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02/03/2013 - Obatalá vem

Lá vem todo de branco, Obatalá. Vem montado em seu cavalo branco. Vem de túnica branca, vem Obatalá. Vem com sua lança branca. Vem com seu escudo branco. Vem negro e santo, guerreiro e altaneiro, Obatalá, todo de branco. Vem como o raiar do dia, sol de Obatalá, com as graças de Oxalá. Oba, Oba, Obatalá.

Quando Obatalá passa tudo fica branco. Tudo o que Obatalá toca fica puro. Obatalá é nuvem branca que passa no céu. Obatalá é sorriso de criança. Obatalá é véu de noiva. Obatalá é o raio branco que põe medo em qualquer um. Obatalá é a lua branca no meio da noite escura. Obatalá é brancura da alma....
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01/03/2013 - Águas de Jobim

Espero março com ansiedade, só para escutar Jobim regendo as águas. Águas vindas dos corpos dos anjos, das nuvens mais escuras, das minas à flor da terra, das bailarinas escafandristas, dos lençóis freáticos de seda ou cetim, das frutas maduras, dos telhados coloniais, das bocas que dão água na boca, das brisas perfumadas, das lembranças dos guarda-chuvas, dos veios dos poetas, das luas serenadas, dos cálices doces, dos prazeres incontidos, dos brejos das almas, dos adeuses em pranto...

Que Tom Jobim harmonize as águas de março com seus paus, pedras e fins de caminho, seus restos de toco, seus cacos de vidro, seus laços e anzóis. Que o maestro soberano dê ritmo as águas das perobas do campo, da madeira de vento, dos mistérios profundos, do Matita Pereira. Que Antônio Brasileiro seja a música que chove no vento ventando e no fim da ladeira. Que a ave no céu e a ave no chão se encontrem pelas águas de março num ritmo puramente jobiniano. ...
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28/02/2013 - Chorante

Chora o sabiá na dobra da janela. Chora o sol nos quartos da lua. Chora o serrote no cerne do jequitibá. Chora o tempo nas voltas do relógio. Chora o grilo em roçadas de pernas. Chora o broto rompendo o chão. Chora a cortina que fecha o espetáculo. Chora o buquê pela separação da noiva. Choram as paralelas por viveram lado a lado e não se cruzarem nunca. Chora a garrafa vazia nas mãos de um bêbado. Chora a cigarra esperando a chuva. Chora o violão nos braços dos desafinados.

Chora o lavrador no meio da estiagem. Chora a amora lágrimas de sangue doce. Chora as palavras a cada investida da borracha. Chora o pescador pelos peixes que não pescou. Chora a bailarina condenada ao silêncio. Chora o peito flechado de solidão. Chora a saudade em cada uma de suas camadas. Chora o destino que não vingou. Chora o mar no balanço das ondas. Chora a cebola na ponta da faca. Chora o sereno no hálito da madrugada. Chora o galo fechando o dia no alto do mourão.


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27/02/2013 - Senitudes

Sem rumo, sem passo, sem prumo. Sem nada, sem tudo. Sem abraço, sem esculacho, sem acima ou abaixo. Sem estrada, sem som, sem parada. Sem veludo, sem agenda, sem fundo. Sem prenda, sem mundo, sem renda. Sem preço, sem merenda, sem tenda. Sem endereço, sem venda, sem direção. Sem apreço, sem lenda, sem sim ou não. Sem jardim, sem canção, sem camarim. Sem tela, sem novela, sem tramela. Sem solidão, sem fim, sem essa ou aquela...

Sem folha, sem vinho, sem escolha. Sem caminho, sem sorriso, sem juízo. Sem luz, sem ser preciso, sem cruz. Sem ninho, sem friso, sem brilho. Sem trilho, sem moradia, sem fantasia. Sem dança, sem volta, sem esperança. Sem nota, sem alegria, sem rio. Sem mio, sem nostalgia, sem vazio. Sem rota, sem plurais, sem casais. Sem ar, sem gostar, sem falar. Sem dinheiro, sem praia, sem coqueiro. Sem cheiro, sem saia, sem estar inteiro. Sem adeus, sem deus, sem ateus...


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26/02/2013 - Olhações

Olhos de fumaça que não me enxergam. Olhos de garça que se abrem para o céu numa envergadura de deixar qualquer um boquiaberto. Olhos de pirraça que só enquadram o que bem querem. Olhos cheios de graça que brilha e encantam, e cantam e brilham. Olhos no meio da praça entre sombras, coretos e árvores. Olhos de massa de modelar ganhando formas nas mãos de criança. Olhos de arruaça e de pintanças, cheios de meninices e danças. Olhos de amaçam, que de repente cercam como cortinas de teatro. Olhos de massa, servidos como um prato de espaguete....
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Comentários (3)

25/02/2013 - Bis

Bis. Bis com aplausos. Bis de cantorias. Bis de chocolate branco, preto, de limão, de caramelo, de frutas vermelhas. Bis de sonho. Bis de tuti-fruti. Bis de romance. Bis de beijo. Bis de afago. Bis de pecado. Bis de bons momentos. Bis de salário. Bis de leitura. Bis de liberdade. Bis de vontade e de força de vontade. Bis de bombom. Bis de sorte. Bis de final-de-semana. Bis de cura. Bis de cachaça. Bis de parto. Bis de novidade. Bis de recomeço. Bis de folclore. Bis de festa. Bis de abraço. Bis de colo. Bis de deus. Bis de nuvem. Bis de drama. Bis de trama. Bis de cama. Bis de comunhão. Bis de saudade. Bis de ternura. Bis de expectativa. Bis de luz. ...
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