Daniel Campos

O Castigador


2010 - Romance

Editora Auxiliadora

Resumo

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25/03/2010 - Capítulo 6

Micaela tinha razão?

Depois de um banho demorado, Sebastian, tendo seu corpo envolto apenas pela corrente em ouro com pingente de São Miguel que não tira do pescoço por nada e uma toalha azul, acorda Malena com um beijo não menos azulado.

Entre abraços mais ousados, ela sussurra que ele precisa trocar de sabonete ou procurar um dermatologista, pois essa sudorese que lhe acompanha há semanas está insuportável.
Envergonhado, deixa a cama e se veste rapidamente, interrompendo assim qualquer possibilidade de romance.

Defendendo-se, Malena diz que não falou para constrangê-lo, mas por zelo. Queria cuidar dele. Já para Sebastian, ela não o desejava mais. Aliás, chegava a ter nojo dele. Só faltou dizer que a mulher estava com saudade do perfume de Hernández.

Antes de o assunto render, Tita bate na porta e avisa que a madre superiora do Colégio Escravas do Sagrado Coração de Jesus e o monsenhor estão na sala esperando por eles. Malena pede um tempo para se arrumar ou para se convencer de que é necessário participar daquele encontro, no mínimo, desagradável.

Irmã Paulina e monsenhor Mariano dividem o sofá de almofadas verdes. Ao lado deles há um altar com uma imagem de São Miguel Arcanjo e três Nossas Senhoras: de Luján, de Loreto e Auxiliadora dos Cristãos. Naquele dia, um arranjo de tulipas bendizia as imagens.

Tita ofereceu de água a vinho, mas os dois religiosos recusaram de um tudo. Sebastian se aproxima cumprimenta-os de forma festiva. Eles retribuem o gesto de forma bem mais fria e com fisionomias mais sérias do que o habitual. Irmã Paulinha já tinha a cara fechada por natureza, mas monsenhor Mariano era fanfarrão. Bravo, mas fanfarrão.

Sebastian puxa conversa perguntando sobre aquele homem alto e negro que permaneceu boa parte do tempo na porta da igreja na noite anterior, mas a madre vai logo ao assunto que a levou até ali. Estica o braço coberto pelo hábito fazendo chegar até o promotor um envelope pardo contendo a documentação de desligamento de Micaela do colégio.

A irmã argumenta que em razão do acontecido na noite anterior aquela era a única atitude que lhe sobrou para conservar o nome da instituição e impedir comportamentos semelhantes por parte de outras alunas. Era preciso repreender para manter a disciplina.

Sebastian ainda tenta argumentar, mas Paulina não recua. Aliás, veio disposta a não ceder um milímetro sequer. Ele pede desculpas, diz que a cena de ontem não acontecerá outra vez, que esse procedimento não vai ser bom para Micaela, mas de nada adianta argumentar. Não é uma advertência ou uma suspensão o papel trazido pelas mãos daquela mulher de olhos duros como o lenho da cruz, mas uma expulsão.

Ele não se conforma e, com um grito, pede para Tita chamar a enteada. Quem sabe se ela se desculpasse ou explicasse o motivo que a levou fazer aquilo a madre mudaria de idéia. Talvez aparecesse com olheiras de choro e arrependimento e com um rosto manso. Ela ainda era uma criança. E aqueles dois poderiam se sensibilizar diante da inocência de uma Micaela recém-despertada.

Enquanto esperam, a freira suspira desacreditada e o padre permanece calado, mastigando a própria saliva. Vez ou outra, ele tosse para quebrar o silêncio ou simplesmente para atestar o cansaço de seus pulmões.

Contrariando apostas, Micaela desce. Mas antes não tivesse descido.

Desce vestindo uma calça jeans toda rasgada, uma blusa preta estampada com uma cruz de cabeça para baixo, além de batom preto, unhas pretas e uma sombra absurdamente preta contornando os olhos. Já o cabelo está todo ouriçado. Se não bastasse a composição, masca um chiclete também preto com a boca aberta.

Ela chega à sala e não diz nada. Aliás, não precisa dizer nada.

Mas como ela já estava acordada e vestida daquele jeito? Os relógios ainda nem bem marcam 7h30. Deve ter sido coisa de Tita, pensa Sebastian. A empregada deve ter avisado a menina e até mesmo a incentivado a fazer tal despropósito. Mas de nada adianta saber essas coisas. Diante daquele visual, a expulsão estava referendada. Nem mesmo o padrasto tem coragem de continuar a defesa.

A madre diz que jamais deveria ter aceitado aquela criatura em seu colégio e que só o fez porque o padre ali presente avalizou sua entrada. Mariano se justifica dizendo que conhece Sebastian desde criança e que sempre achou Micaela uma criança muito educada. Diz não saber o que aconteceu com a menina.

Levantando a bengala branca contra o rosto do dono da casa, a madre diz que em lar de pais separados, onde amantes vivem sem as bênçãos do matrimônio, onde tem alguém que mexe com espíritos, onde a mãe nem se dispõe a vir conversar sobre uma situação tão grave quanto essa tudo só pode dar nisso mesmo.

Sebastian se irrita com a madre e afirma que ela não tem conhecimento, tampouco autoridade suficiente para dizer tais coisas de sua família. Aos gritos, exige que a irmã se retire imediatamente de sua casa.

O monsenhor se levanta apoiando no braço da poltrona e diz que aquele não é o comportamento que se espera de um fiel. Após um breve sermão estruturado em paciência e respeito, Mariano pede a Sebastian que, por um tempo, deixe de freqüentar as missas de sua igreja.

Onde já se viu um sacerdote pedir que alguém não vá à igreja? Ou melhor, proibir alguém de assistir missa?

O pedido deveria ser encarado como uma penitência diante dos últimos acontecimentos. Afastando-o por um período considerável, evitaria falatório. Por pelo menos três meses estaria impedido de freqüentar qualquer celebração litúrgica da igreja de São Miguel Arcanjo.

Ele, que tinha tanto apreço pela pessoa de Mariano e por aquela igreja, sentiu-se profundamente traído. Em pouco mais de quinze minutos, havia ganhado dois castigos. O primeiro, vindo de uma madre. O segundo, de um monsenhor.

Por alguns segundos pensou que Micaela tinha razão. Como compreender que tanto amor fosse retribuído com castigos.

Por mais que não aceite ou concorde, sabe que não há mais nada a fazer para remediar aquela situação vexatória. Então, caminha até a porta, abre-a vagarosamente, como se arrastasse toneladas, e abaixa a cabeça como um castigado.

Os religiosos passam calados e aparentemente satisfeitos com o que fizeram. Ao sair, o padre ainda o entrega um jornal. Na capa, uma foto de Sebastian e a manchete: "Promotor faz escândalo na porta de igreja"

Um homem entre o desconsolo e a raiva volta-se ao pé da escada e enxerga uma Micaela deformada sorrindo um sorriso largo e preto. A menina parece ter sido engolida pela escuridão de seu sorriso preto.

Tão preto quão aquele homem que nunca viu sorrir, mas que séria e desconhecidamente o persegue pelo subconsciente afora.

Observação do autor: Acompanhe o desenrolar desta história. O próximo capítulo é na terça-feira santa (29/3).


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