Daniel Campos

O Castigador


2010 - Romance

Editora Auxiliadora

Resumo

Imprimir Enviar para amigo
27/05/2010 - Capítulo 24

No banco dos réus

- Bela tentativa, Sebastian. Mas não foi o suficiente para interromper o curso de seu castigo. Como pode observar, continuo aqui.

É assim que o promotor desperta, 7h23 da manhã, saudado por alguém que se apoderou mais uma vez do corpo de sua mulher.

- Do que está falando? Cadê Malena? Quem é você? O que quer de mim?

- Como você é repetitivo. Toda vez que venho aqui preciso me apresentar. Sou Jhaver, seu anjo castigador e, antes que diga, o desprazer é todo meu...

- Então...

- Isso mesmo que você pensou. A cena há pouco com sua avó foi comovente. Conseguiu transformar a ira dela em amor. Parabéns. Resgatou um espírito do umbral. Marcou pontos, mas não pontos suficientes para impedir a continuidade de seu castigo.

- Pensei que com o perdão dela estaria tudo acabado, que você me deixaria em paz.

- Não é assim tão fácil se livrar de uma punição.

- E o que é preciso fazer?

- Como você é inocente. Achei que fosse lidar com uma pessoa mais preparada. Pensa realmente que um castigador vai lhe dar a receita de como escapar de seu chicote?

- Então o que faz aqui? Veio zombar de mim?

- Não. Estou aqui porque tenho que cumprir regras. Vou lhe dar uma chance de se defender das acusações.

- Acusações? Regras? Defesa? Não entendo...

- Não entende ou não quer entender? Pensei que estivesse acostumado com essas coisas de tribunal?

- Por que quer me dar uma chance?

- Não pense que sou bonzinho. Com o perdão de sua avó, o espírito que oficialmente me trouxe até você, o cenário muda um pouco. No entanto, depois de lhe observar mais atentamente notei que outras acusações graves pesam sobre você. Mas como você esboçou uma mudança de comportamento nos últimos dias, estou aqui para reexaminar sua situação. Mas não se anime. A situação não lhe é nada favorável.

Sebastian fica em silêncio, concentrado.

- Não adianta tentar chamar socorro de seus amigos espirituais. Lamento lhe informar, mas estamos a sós aqui. Contente-se com uma conversa a dois. Valentina, Klaus, Gastón e os outros estão todos bloqueados.

- Com base em que eu sou acusado?

- Sobretudo, nos 10 mandamentos. Sou uma espécie de guardião das leis divinas.

- Então essa história de tábuas da lei é mesmo real?

- Acha que Deus escreveu tudo isso em pedras à toa?

- Mas há quem diga que isso foi invenção da Igreja para controlar os homens.

- Você acredita em quê? As tábuas foram dadas por Deus ao povo de Israel, no contexto da Aliança, por meio de Moisés. São normas para conduta humana.

- Com esse tanto de regras o livre arbítrio não passa de uma armadilha.

- Se você tem uma referência para seguir, evita cometer erros que possam afastá-lo do caminho de Deus. É preciso saber aliar suas escolhas aos mandamentos.

- Mas eu sempre fui fiel à maioria dessas regras que sei décor desde o catecismo.

- Isso é o que você diz. E a maioria não é o todo! Qualquer homem que guardar toda a lei, mas tropeçar em um só ponto, terá se tornado culpado de todos.

- Então toda vez que um mortal desrespeita um mandamento, você aparece. Deve trabalhar muito, não?

- Sem ironias. O homem possui o livre-arbítrio. Pode fazer suas opções. Mas é responsável por elas. Ao desobedecer a um mandamento, peca. E como pecador receberá seu castigo nesse ou em outro plano. Tudo depende dos propósitos de Deus para cada indivíduo e da capacidade de pecadores como você se regenerarem. Alguém já deve ter lhe falado que a vida terrena é um grande aprendizado.

- Se eu ainda estou em fase de aprendizado porque já veio me punir? Fui reprovado?

- O papel de um castigador é interferir quando alguém ultrapassa em muito certos limites, trazendo sérios problemas aos planos divinos. Não é de hoje que meu chicote lhe espreita. O fato de eu ser encarregado de seu castigo e não outro castigador tem uma razão. Um dia você saberá. Por hora, saiba que o nosso encontro estava previsto. Sua avó, dona Soledad, só apressou as coisas.

- Sou acusado de infringir quais mandamentos?

- Todos! Uns com mais, outros com menos gravidade.

Antes que Sebastian pudesse contestar tal afirmação, Jhaver continua:

- Toda vida humana, desde sua concepção até sua morte, é sagrada porque cada pessoa foi criada à imagem e à semelhança do Deus vivo e santo.

- E...

- E você é acusado de matar sua avó e Diego, o filho de Malena.

- Mas minha avó me perdoou.

- E o pequeno Diego? Acha que foi fácil para ele se despedir dessa vida com apenas cinco anos? Tem certeza de que ele lhe perdoou?

- Foi um acidente. Há fatos e testemunhas que atestam a minha inocência.

- Mas ele só foi atropelado porque viu você beijando a mulher do pai dele e, em seguida, correu à morte fugindo de você. Certamente, se não houvesse o beijo e a perseguição, o suposto acidente não teria ocorrido, certo?

- Correto, mas...

- Basta. Já ouvi o que precisava.

- Ainda em relação a este mandamento, é acusado de defender, em tribunal, casos favoráveis à eutanásia voluntária e ao aborto. Você é cúmplice de vários assassinatos?

- Prefiro pensar que eu ajudei a poupar o sofrimento de muitas pessoas...

- Cada pessoa tem uma carga de sofrimento dada por Deus. Ele sabe o quanto cada um pode suportar. Além disso, já lhe disseram também que a dor, muitas vezes, é utilizada como aprendizado espiritual. Você, por acaso, tem autorização para interferir nisso?

- Mas eu...

- Simplesmente responda o que lhe perguntei.

- Não.

- Ótimo! Isso me leva a concluir que você foi, direta ou indiretamente, responsável por muitas mortes.

- Mas eu, como promotor de Justiça, só defendi o que achei melhor para mulheres vítimas de violência sexual e também para moribundos.

- Acha que o melhor caminho é a morte? Acredita que ela cura, resolve, ameniza tudo?

- Mas que vida eles teriam aqui? Naquelas condições físicas e psicológicas não conseguiriam jamais encontrar a felicidade. E Deus quer que sejamos felizes.

- Pelo visto, não tem idéia da dor que causou defendendo eutanásia para muitos enfermos. Muitos doentes ficam semanas, meses, anos numa cama para alcançar à purificação. Ao interromper esse processo você lança esses espíritos de volta à escuridão. A maioria não aceita voltar e começar de novo. Preferem se dedicar à revolta. Ao reencarnar, o corpo que o espírito ganha está relacionado com o que ele terá de passar na Terra. Se o corpo tem alguma doença ou limitação é porque o espírito que nele habita terá de sofrer tais provações para chegar à Glória.

Sebastian começa a tremer de nervoso.

- E os abortados? É capaz de imaginar o estado de ódio em que eles ficam após ver frustrada a chance de conseguirem um corpo para apaziguar o remorso dos erros do passado? Você não tem consciência do desdobramento espiritual de um aborto. Os espíritos abortados muitas vezes se unem com outros no astral inferior para vingar-se dos pais que o rejeitam. Outros ainda vão prejudicar aquelas que seriam suas mães causando depressão, desarranjo familiar e até mesmo o suicídio delas. Há aqueles que munidos de tamanha raiva conseguem que a mãe morra no desfecho do aborto.

O promotor não tem o que dizer.

- Se já sentiu desconforto em encontrar sua avó naquele lugar, imagino o que sentiria no hospital dos abortados no Umbral. Podia lhe levar até lá para você ver de forma crua o que acontece com aqueles que você ajudou a fechar a única porta disponível para uma nova encarnação. Muitos não terão outra chance de voltar à Terra. Você é capaz de se lembrar quantas vezes defendeu o aborto com frases de efeito, falando do sofrimento dessas mulheres, sem se preocupar com os espíritos abortados?

Sebastian morde os lábios.

- São muitos os casos, não é? Mas eu quero lhe lembrar apenas o de Vanina.

- Mas ela era só uma adolescente, havia sofrido abuso na própria escola, estava sem condições emocionais de ter um filho.

- Sim. É revoltante, mas faz parte do processo em torno da evolução espiritual destinada a ela. Vanina iria amadurecer muito junto ao filho, um ajudaria o outro. Tinha uma missão fundamental a cumprir com ele. E você conseguiu que o juiz lhe concedesse o direito ao aborto. Como promotor sua missão era punir o agressor e não um espírito indefeso. Por mais malvado que tenha sido na vida passada, o espírito, ao reencarnar, volta frágil na forma de feto.

- Mas hoje Vanina é uma mulher feliz, acabou de terminar a faculdade de administração de empresas, tem um trabalho legal...

- Acha que ela é feliz, que conseguiu encontrar a paz após o aborto? Como ela vai poder cuidar de uma empresa se até hoje não teve capacidade de administrar o que aconteceu em sua vida? Tem medo de se relacionar e, devido às conseqüências do aborto, nunca mais poderá ter um filho.

Sebastian balança a cabeça...

- Vou lhe contar o que aconteceu. Ignácio teve uma série de erros em sua encarnação passada. Depois de muitos anos se arrependeu e aceitou reencarnar. Nasceria do ventre de Vanina, que já havia sido irmã dele em uma vida na qual lhe causou muito sofrimento. Eles tinham um propósito a cumprir, coisas a resgatar.

- Mas como eu iria saber disso? Eu conheci apenas a história da menina em prantos, abusada por um maníaco.

- Se respeitasse as leis de Deus teria ponderado independentemente de saber ou não do que acontece do outro lado. Escute: graças a sua colaboração, senhor promotor, Ignácio não conseguiu voltar. Vanina e ele continuam com pendências. Ao contrário de evoluir, vão retroceder e sofrer, e sofrer e sofrer...

Jhaver aprofunda a conversa:

- Você não pode imaginar o suplício de Ignácio recebendo as pancadas de um médico. O desespero dos aparelhos, das seringas, da dor que o queimava. Você não ouviu os gritos de “não, mãe, não me mate” entoados por ele. Foi uma operação bruta. O pequeno foi sugado pelo aborto, retirado do útero de Vanina aos pedaços. O feto foi jogado no lixo e o espírito, desconfigurado, encaminhado para o hospital do Umbral.

- E por que espíritos de luz não tiraram o espírito antes do aborto?

- Por que sempre há a esperança das mães desistirem de tal crime. Os iluminados tentam influenciar os pais até o último momento.

- Que horror!

- A dor do espírito abortado só não é maior porque a Virgem Santíssima coloca sua equipe de benfeitores espirituais para socorrer essas vítimas indefesas. O celestial faz a sua parte, mas muitos não querem socorro. Querem continuar no corpo da mãe. Lutam até o último segundo sofrendo as atrocidades de um aborto. Médicos espirituais tentam, por meio de cirurgias, reconstruir aqueles que foram destroçados pelos aborteiros. Mas a maioria não consegue apagar os momentos de horror, como exclamou, do assassinato.

- Mas eu não tive culpa, Jhaver. Eu não tive culpa...

- Errado. Você, como defensor do aborto de Vanina, tem sua parcela de culpa.

- E como ele está hoje? Já se passaram sete ou oito anos desse episódio.

- Ele continua com ódio, vivendo na Colônia dos Rejeitados, ao lado de crianças deformadas que mais parecem ter morrido num campo de batalha. Repito: você não imagina o sofrimento e a revolta que emanam desse lugar.

- Então, estou sendo castigado pela morte de Ignácio?

- Também.

Sebastian coloca as mãos sobre o rosto e abaixa a cabeça, como que no banco dos réus.

Observação do autor: Caros leitores, o próximo capítulo será postado no dia 1º de junho (terça-feira). Até lá!


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar