Daniel Campos

O Castigador


2010 - Romance

Editora Auxiliadora

Resumo

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01/07/2010 - Capítulo 34

O tempo passa, mas os castigos não

Dezessete dias se passaram desde que Malena foi internada e, para a angústia de todos, ela continua em estado de coma. Os médicos não sabem explicar muita coisa, mas dizem que ela pode acordar a qualquer momento. É preciso paciência. No entanto, já há quem fale em eutanásia. Mas o promotor dessa vez não pensa em aliviar o sofrimento da paciente ou dos familiares. Mais do que querer fugir de novas castigações, ele tem plena esperança de que a mulher vai despertar e se livrar de tubos e sondas.

É essa certeza que o move. Sebastian passa boa parte de seu dia no hospital e outra, no centro espírita. Tantos dias depois, Alicia, que encenava o papel de irmã dedicada, já não tem disposição de ficar como uma cã de guarda plantada naquele centro médico. Micaela também se afastou um pouco e Valentina fica a maior parte do tempo na capela do hospital. Com isso, o promotor ganha mais espaço e tranqüilidade para sua atuação. Chegou a procurar doutor Gutiérrez, um conceituado psiquiatra que se dedica ao universo espírita.

Foi ele quem explicou para Sebastian que o estado de coma de Malena é uma situação parecida com a do sono, quando a alma se liberta parcialmente do corpo. Diferente da morte, o espírito continua ligado ao corpo físico pelos laços fluídicos ou energéticos.

O cético promotor a cada dia se sente mais familiarizado com esse universo e é isso que o impulsiona a conversar com a mulher no tempo autorizado às visitas. Tem esperança de ela ouvir e emitir algum sinal. No entanto, até agora nada aconteceu. Ele a beija, a acaricia, relembra momentos importantes vividos pelos dois. A expectativa é de que Malena, assim como outros pacientes em estado de coma esteja presente no local onde seu corpo ficou paralisado, presenciando o que ocorre ao seu redor.

Porém, quando esteve no hospital junto com o promotor, doutor Gutiérrez não sentiu a presença do espírito de Malena. Nem ele, nem Valentina, nem Celeste nem nenhum outro médium. Sebastian se inquieta com o fato de sua mulher não estar ali. Mas foi tranqüilizado por todos. Afinal, só os espíritos apegados em demasia ao mundo material, ao seu corpo, aos seus bens, ficam próximos.

No caso de um espírito mais elevado, como é o caso de Malena, enquanto seu corpo é tratado, ele se desloca pelas dimensões espirituais do espaço infinito, visitando lugares e espíritos afins. No entanto, ela faz essa viagem sempre ligada ao seu corpo pelo cordão fluídico, ao menos enquanto seu corpo tiver vida orgânica.

Diante da inquietude de Sebastian, doutor Gutiérrez sugeriu que se fizesse uma sessão mediúnica para tentar estabelecer uma comunicação. O espírito de Malena poderia, via pensamento ou intuição com aqueles que estão ao seu redor, transmitir seus recados.

Com a saída de Gastón e com o fato de Valentina ainda estar muito mexida emocionalmente, Afonso, um senhor de bastante idade, que andava corcunda apoiado em uma bengala, assumiu o comando das atividades do centro.

Mas em nenhuma das sessões mediúnicas Malena se manifestou. Paralelo a essas tentativas, sensitivos como Tomás e Susana, crianças que já haviam dado prova de mediunidade em ocasiões passadas, também se calaram.

Pelo visto, ela não queria se comunicar ou não tinha condições de fazê-lo. Sebastian não sabia o que era pior. Tornou-se um misto de esperança e frustração.

Doutor Gutiérrez disse que o coma, ou a experiência de quase morte, é uma oportunidade divina para se corrigir a trajetória a partir da reflexão sobre o que se realizou ou o que se deixou de fazer. As pessoas que passam por isso, segundo o doutor, trazem na mente, quando despertam, um novo sentido para a vida.

No entanto, Sebastian se pergunta por que uma pessoa tão boa e generosa quão Malena, que já sofreu tanto com alguns acontecimentos, precisava corrigir sua rota. Na verdade, o castigado é ele. Contudo, alguém lhe falou uma vez que a filha de Valentina, em razão dos limites impostos pelo marido, vinha deixando de cumprir sua missão.

Também disposto a fazer um balanço de tudo e não motivar novas discussões, ao longo desses dezessete dias, o promotor se distanciou do mundo em que vivia. Só manteve contato com Tomás, que acreditava piamente em sua inocência, e com Valentina. No entanto, a sogra havia mudado de postura, como se estivesse com um pé atrás com ele. Afinal, ele insistia em pedir para conversar com Jhaver, dizia que ele poderia ajudar.

Prontamente ela trabalhou para que Jhaver não descesse mais em seu corpo, tampouco se aproximasse de Tomás ou de outra pessoa de sua família. Fora alguns sonhos, Sebastian passou os últimos dias sem comunicação com seu anjo castigador.

Será que os castigos acabaram?

Um telefonema de Micaela leva o promotor de volta à casa de Malena. Desde o incidente nunca mais colocou os pés lá. Foi expulso pela mulher e depois pela cunhada e pela filha. Até mesmo a empregada fez questão que ele saísse. Desde então, passou a morar em seu antigo apartamento. Até suas roupas e outros pertences pessoais mandou que um motorista fosse buscar. Mas aquela ligação desesperada fez com que ele voltasse. Não disse nada muito concreto, apenas chorou e disse que precisava vê-lo com urgência.

Chegando lá, assusta-se ao encontrar a adolescente, como que embriagada ou drogada, dependurada no telhado da casa, ameaçando se atirar. Pior, ela tinha raspado todo o cabelo. Está careca, descalça e com um vestido de sua mãe. Parece não haver mais ninguém em casa. Eles conversam, na verdade, brigam. Eles gritam, ela chora, ele reza, ela implora que a deixe morrer em paz. Os cachorros latem, os batimentos aceleram, os bombeiros estão longe.

Micaela insiste em dizer que o ex-padrasto, como acostumou a chamá-lo depois da cena que presenciou no quarto da mãe, está proibido de entrar ali. Ao contrário do que Sebastian afirma, ela diz que não ligou para ele, que não quer vê-lo. Mas o promotor insiste:

- Filha, desça daí, vamos conversar.

- Eu não sou sua filha e não tenho nada para conversar com você.

- Dependendo do que fizer saiba que não terá mais volta.

- E quem quer voltar? Minha vida não faz mais sentido. Meu pai sumiu, minha mãe está quase morta, eu que já tinha perdido um irmão, agora perdi outro... E tudo por sua culpa. Saia daqui!

- Sua mãe vai se recuperar... tenha fé!

- Fé em quem? Naquele padre ridículo, ou melhor, em monsenhor Mariano? Nas freiras hipócritas do colégio Escravas do Coração de Jesus? Nas orações de São Miguel que me obrigou a decorar?

- Eu sei que errei em muitas coisas. Mas comecei a ter uma nova visão das coisas.

- Cala a boca. Você não sabe nada. Se não fosse você entrar em nossa família nada dessa tragédia teria acontecido.

- Mas você é uma menina bonita, inteligente, tem muito ainda pra viver...

- Eu não quero viver mais nada...

Ela dá uns passos para lá, cambaleia para cá, escorrega, espalma o telhado. Sebastian fica no jardim sem saber o que fazer. A única esperança é fazê-la desistir:

- Você precisa estar viva para cuidar de sua mãe, de seu irmão, de sua avó... Eles precisam ter você por perto.

- Não. Eu é que sempre precisei deles. Agora, não quero mais atrapalhar a vida de mais ninguém.

- Eu posso lhe ajudar...

- Não! Ninguém pode. Vá embora.

- Desculpe por lhe desapontar, mas não vou sair daqui.

- O problema é seu. Já que quer ficar, vai assistir o meu último ato. É bom que presencie mesmo, para você ver o quanto me prejudicou. Aliás, o quanto prejudicou a minha família.

- Não seja egoísta. Todos nós estamos desesperados, sofrendo muito com a falta de sua mãe... Precisamos nos ajudar uns aos outros.

- Mas ninguém, como eu, está esperando um filho. Eu não quero que essa criança sofra o que eu sofro.
Nesse momento, Sebastian entra em choque e a menina avança para os braços da morte. Mas, como se fosse segurada, desequilibra-se e cai para trás, desmaiada, sobre um chão de telhas.

O promotor corre pelos degraus internos. Chegando lá, enfrenta o medo de altura, e em meio a tonturas e náuseas, ampara a menina, que, ainda de olhos fechados, diz apressada:

- Cuide dela! Esse não é o meu papel, mas como todos estão preocupados em defender Malena e em me deter... Além disso, não é qualquer espírito que consegue enfrentar esses vampiros que se apoderaram dela.

- Jhaver?

A pergunta fica sem resposta. Ao menos, sem uma resposta clara.

Sem acreditar no acontecido, Sebastian carrega aquela menina de olhos pintados de negro, cabeça raspada e grávida pelo telhado afora com certeza de que os castigos ainda falam mais forte...

Observação do autor: Próximo texto: dia 5 de julho (terça-feira)


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