Daniel Campos

O Castigador


2010 - Romance

Editora Auxiliadora

Resumo

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06/08/2010 - Capítulo 44

De volta pra casa

O corpo de Sebastian, deitado sobre a cama de seu apartamento, está frio e pálido. Passou por momentos de agitação, chegou a falar frases não compreendidas, com se estivesse vivendo um pesadelo, e agora está quase sem vida naquele quarto do sexto andar. Não há ninguém em casa para testemunhar aquela situação. E se houvesse de nada valeriam possíveis tentativas de ajuda. O retorno de seu perispírito para o corpo, neste momento, é um fato quase impossível de ocorrer, já que ele está preso em outro plano.

A intensidade do cordão de prata está mais fraca do que o ideal. O coração está confuso: ora pulsa ofegante ora numa lentidão capaz de deixá-lo morto entre as pausas que separam uma batida de outra. Já enfrentou o começo de uma parada cardiorrespiratória e agora sua pele transparece as marcas da sofreguidão que vivencia naquele lugar. Riscos avermelhados tatuam seu pescoço, seu peito, seus braços, suas pernas. Ranhuras de unhas e dentes.

Não é só o espiritual de Sebastian quem sofre com essa experiência no Umbral, seu corpo físico também padece.

Dentro daquela caverna, afastado de seu quarto por uma distância muito mais psicológica do que física, ele encontra Miguel. São Miguel, o arcanjo. O promotor se ajoelha e abre um sorriso, um sorriso sério, porém aliviado em razão do príncipe das milícias celestiais ter chegado para resgatá-lo. No entanto, trata-se apenas de mais uma projeção, outra armadilha criada por aquele mundo que quer aprisionar Sebastian cada vez mais em uma teia de ilusões.

Tanto que quando ele se aproxima daquela criatura que julga ser um arcanjo, o falso Miguel o empurra para uma espécie de limbo movediço que vai puxando seu corpo para dentro daquela terra preta e sem vida, em franca decomposição. Ora se vê afundando naquela lama ora se vê puxado por dezenas de mãos tão sujas quão feridas. Ele luta para sair dali. Ele se debate. Ele se contorce. Mas não há onde se apoiar. E, aos gritos, é tragado para as profundezas daquele pântano sem fundo.

Sebastian cai. É como se passasse horas em queda livre. Enquanto vive esse mergulho, não enxerga nada. A única certeza é a de que está num lugar escuro e fedorento. É alvejado por sons que só fazem deixá-lo ainda mais temeroso. Há berros de cabra, há grunhidos de porco, há uivos de lobo. Há bater de dentes. Há choros de todos os tipos, de crianças com fome a meninas sendo estupradas, de dores cancerígenas a mutilações desumanas. É como se ele caísse no nada, no vácuo, num buraco negro e ficasse à mercê dos sons mais angustiantes que possam existir. Tudo é muito feio e aterrorizador.

Belas paisagens surgem só como forma de ilusão. São extremamente frágeis, desaparecem ao menor toque. No mundo físico, os homens podem embelezar artificialmente tanto o ambiente quanto a própria aparência. Já no plano astral isso não é possível, pois todos os defeitos, feridas, falhas, paixões, desejos e vícios ficam expostos na aura de quem está ali. O Umbral é o retrato do que os seres humanos são como consciências e, não, como criaturas encarnadas.
Não há como disfarçar, negar, esconder. Ali, é o que se é. E a mente de Sebastian, naquele momento, é tão nebulosa e angustiante quão aquele ambiente. Preocupações, culpas, medos, insatisfações. Os sentimentos e pensamentos ali, no reino das sombras, ganham vida. Principalmente, os negativos. Ali, a morte deixa de ser um fim para ser um meio.

É preciso correr dali. Mas como se desvencilhar de si próprio? O Umbral só existe em razão de seus habitantes, pois é o reflexo do estado íntimo de quem lá está. Cavernas, abismos, lamaçais, escuridão, espinhais, tudo ganha à realidade a partir do subconsciente dos espíritos. Por isso a existência de favelas, vilas medievais e campos de extermínio no Umbral. Os espíritos vivem presos a formas mentais das quais não conseguem escapar.

A imaginação de Sebastian o leva a ver Caronte, o barqueiro das almas; Cérbero, o cão de três cabeças que guarda a porta do inferno; a serpente do Éden, que induziu Adão a comer o fruto proibido; centauros; as Três Fúrias e a Medusa. Monstros mitológicos que as lendas dizem habitar o inferno. Sua mente exterioriza aquelas e outras criaturas. Em queda livre, sente a presença de Alastair, Anúbis, Lilith, Lúcifer, Leviatan, Amon, Mefistófeles, Belial, Yaotzin, Yen-lo-Wang e outros deuses malignos, demônios famosos, bestas, seres gerados a partir de um instinto primitivo, de sentimentos negativos.

Apavorado com suas visões, tenta elevar seus pensamentos a Nossa Senhora, ao coro dos anjos e santos, a Deus. No entanto, ninguém o ampara. Não há milagre algum no Umbral. Os milagres precisam nascer de dentro para fora. E enquanto isso não acontece, ele continua a cair por entre monstros que vagam sem destino por uma paisagem sem leis e caótica.

É como se a queda de Jhaver tivesse causado uma imensa confusão no céu e no inferno. Ao menos, é isso o que Sebastian sente ou se vê obrigado a sentir. E tudo isso, por sua culpa. Foi ele quem causou tudo aquilo. É ele o protagonista desta história. Por sua causa, um anjo castigador está preso no Umbral. Por sua causa, espíritos de luz estão sendo atacados lá fora. Por sua causa, há um levante, uma guerra, um apocalipse em curso.

Pode parecer exagero. Mas no Umbral tudo ganha a dimensão exata do que se pensa, do que se sente, do que se é. Não adianta menosprezar, ignorar, tentar diminuir ou controlar o mundo interior. Ali, pensamentos e sentimentos são soberanos. E quando Sebastian tenta se impor diante deles e volta a focar o salvamento de Jhaver, de forma inesperada, suas costas batem contra um chão duro como pedra. No entanto, não é chão. São corpos.

Corpos caídos. Eles não voam, são densos demais para isso. Todos se arrastam em busca de ajuda. Todos se engalfinham querendo ajuda. E pior, todos são conhecidos de Sebastian. Todos estão presos com correntes. Todos estão sofrendo algum tipo de tortura. Malena pede socorro, assim como Micaela, Valentina, Diego, Gastón, Tomás, padre Mariano, irmã Ruth, seus pais, Alicia, Hernandez, Titã, Susana, Celeste...

Ele avança. Chega perto de Malena. Pode sentir sua respiração. Ela o trata bem. O acaricia, fala palavras macias. Diz estar sofrendo muito ali e que ele só pode salvar uma daquelas pessoas. Somente uma. Diz que o ama demais e que quer viver o resto de seus dias em sua companhia em um lugar bem bonito, longe de tudo e todos. Quer recomeçar sua vida. As palavras e os gestos são os mesmos utilizados por Malena. Eis então que lhe pede um beijo. Quando as bocas estão perto de se unir, um braço puxa Sebastian.

É Gastón. Ele diz que seu afilhado espiritual tem o dever de salvá-lo. Afinal, ele foi morto em seu lugar. Sempre foi fiel a sua luta, acreditou nele acima de tudo. Agora, não quer passar o resto da eternidade naquele lugar sombrio. Diz que se optar por ele terá seu prestígio de volta. Gastón promete ser uma espécie de anjo da guarda na vida de Sebastian. Diz que pode lhe dar muitas coisas. Até mesmo Malena. Explica que se ajudar a mulher agora, ela o deixará logo em seguida. Afinal, ela já o tinha expulsado de casa. Estendendo-lhe a mão argumenta que o melhor a fazer é confiar em um amigo que foi capaz de dar a vida por ele.

Nesse momento, aparece Micaela. Está com uma barriga de nove meses, pronta para ganhar o filho. Surge dizendo que ele prometeu que iria cuidar dela e daquela criança. Diz que sofre demais naquele lugar. Que espetam agulhas na barriga dela. Que a violentam. Que vão fazer barbaridades com o filho que ela espera. Sua enteada pede que ele a salve, pois ainda é nova e tem muito a viver e que a criança não tem culpa dos castigos que eles estão sofrendo. Ainda apela que, se não puder salvá-la, que resgate ao menos o seu filho. E ela coloca as mãos do padrasto sobre a sua barriga e o bebe mexe.

Tomas, Diego, Valentina, Celeste, Susana e outros também imploram para serem salvos. Cada um tem um jeito de pedir. Cada um tem uma fraqueza de Sebastian para atacar. Micaela expõe a barriga, Gastón segura sua mão, Malena aproxima seus lábios. Porém, Sebastian não aceita as provocações e seduções e se afasta. Ele corre em direção a um anjo negro que está, como uma espécie de demônio, castigando aquelas criaturas. É o senhor dos castigos, das torturas, das dores.

Ele é questionado e pressionado por aquelas almas que imploram ajuda com rostos conhecidos. A intenção é tentá-lo até que desista de salvar o anjo negro. Argumentam que ele não pode resgatar quem os colocou naquela situação. Mesmo assim, o promotor caminha em direção ao espírito que julga ser Jhaver, tropeça em mais uma projeção e cai em outro lugar.

Agora, está em uma sala ampla em companhia de várias representações de Jhaver. Em uma delas, ele está sentado em um trono, garboso, vestido com um manto negro. Em outra, ostenta uma armadura prateada e empunha um chicote contra criaturas perversas. Ao lado, outro, com a mesma aparência, só que este prefere atacar seres humanos. Mais adiante, surge caído, tendo as asas arrancadas também caídas ao seu lado. Existe uma projeção em que ele está de joelhos, saudando a chegada de Sebastian como seu salvador. Há outra que o traz todo acorrentado, revoltado como um cachorro raivoso, pronto a acabar com o promotor de uma vez por todas. Existe ainda a figura de Jhaver acorrentado, preso em uma cruz, amordaçado...

Há representações que o projetam negro e branco; calvo e de cabelos compridos; chorando e sorrindo; calado e dizendo palavras de ordem; fardado e em farrapos; com botas e sandálias de gladiador; com olhos vermelhos, azulados, negros e amendoados; envolto de ouro, de fogo e de sangue; com chicotes de vários modelos e cores.

Sebastian não pode errar. E também não tem mais tempo a perder. Tinha ido tirar uma pessoa determinada. Estava direcionado para pegar uma e puxar. Se escolhesse alguém que não fosse propriamente Jhaver, sairia daquele lugar sem cumprir sua tarefa. E talvez não tivesse outra chance de voltar. Poderia também selar o início de uma estada permanente ali. Então, fecha os olhos, reza e caminha até colocar a mão sobre um daqueles espíritos.

Escolhe um de pele morena clara, com asas coloridas na cor de vinho tinto, cabelo castanho repleto de cachos, pés descalços, chicote singelo e olhos amadeirados. Nenhum desses detalhes condiz com a imagem de Jhaver. No entanto, algo o levou a escolher este. Algo que mais tarde ele iria saber explicar. Por enquanto, tudo se perde no mistério.

Sebastian pousa as mãos naquele anjo negro e usa da energia do cordão de prata para se tornar mais denso e conseguir puxá-lo. Concentrado, o promotor dá um passe, mesmo sem perceber, e isso muda o padrão vibracional do corpo espiritual de Jhaver. Tão logo isso acontece, os espíritos mais avançados, que não tinham acesso a ele, conseguem ter condições de socorrê-lo.

Aquela caverna começa a desmoronar, os espíritos ficam alvoroçados, tudo vai se desmanchando, se perdendo, se destruindo. Até mesmo a imagem de Jhaver, que agora aparece negro, com asas acinzentadas, cabelo raspado, coberto de feridas e hematomas, maltrapilho. Nada lembra aquele Jhaver imponente e glorioso de tempos atrás. Esgotado ou envergonhado, não consegue se comunicar.

Pouco depois, Sebastian e Jhaver aparecem ao lado de Klaus e outros socorristas. Não há tempo para comemorar, embora a fisionomia dos iluminados reluza de forma bastante positiva. O grupo envolve os dois num campo de luz e começam a caminhar buscando uma saída. Conhecendo bem os modos daquele lugar, estão prestes a sofrer o maior dos ataques.

As bestas do Umbral aparecem junto a legiões ensandecidas. Todos estão dispostos a lutar para que Jhaver, o rei dos castigadores, continue ali entre os espíritos que ele castigou. Há muita revolta e sede de vingança contra o anjo negro. Querem castigá-lo e também usar seus poderes para fortalecer ainda mais os exércitos umbralinos.

Franco e o restante do grupo já estão enfraquecidos. Afinal, haviam dispensado muita energia nesse salvamento, combatendo uma série de investidas. Sebastian caminha de costas e, sem perceber, pisa em uma espécie de rede energética que o prende ao mesmo tempo em que o alça para o alto de uma árvore seca.

Sob pedradas, Benjamin volita e o resgata, libertando-o daquela armadilha, mas o clima de terror tende a se agravar cada vez mais. Cercados, todos se concentram na esperança de unirem suas luzes e deixarem aquele lugar o quanto antes.

Mesmo enfraquecido, Jhaver consegue salvar Klaus, protegendo-o com suas asas, de um ataque energético e desmaia em seguida. Um gesto capaz de dissipar qualquer dúvida a respeito de sua redenção. O maior de todos os castigadores é carregado pelos espíritos iluminados. O círculo se fecha.

Eis então que há a abertura de um portal. Alda, Agatha e os demais iluminados que estão em vigília por aquele grupo conseguem abrir esta passagem. Eles conseguem entrar e cair nas bases de uma muralha que separa o Umbral das colônias mais periféricas. Uma área onde a vibração não é tão baixa e na qual vagam espíritos à procura de ajuda.

Jhaver chega ao hospital como um farrapo humano e é recebido pelas equipes de socorro que se assustam com o que vêem. Muitos se recusam a cuidar de um castigador. Afrânio, que é médico, mesmo precisando de cuidados como os outros, inicia o trabalho de acolhimento, alimentação, limpeza, cura e orientação daquele anjo negro.

É ele, com a ajuda de poucos espíritos amigos, que começa um tratamento, puramente de luz, para desintoxicar os chacras extrafísicos do corpo energético do anjo negro, e tratamento psicológico para fazer Jhaver encarar sua nova realidade. É preciso trabalhar para libertá-lo do seu passado.

Enquanto isso, Ágatha acompanha o perispírito de Sebastian em seu processo de retorno ao corpo físico. Ele precisa de tratamento, mas não pode ficar mais tempo no Astral. Seu cordão de prata está se esvaindo. É preciso correr para evitar o pior. Ao atravessarem o portal, a serva de Nossa Senhora ainda precisa afastar umbralinos que estão com muita raiva daquele encarnado. Afinal, ele libertou Jhaver.

Às cinco horas e vinte e oito minutos da manhã, o promotor acorda em sua cama, com o corpo dolorido, a cabeça pesada e vultos do que viveu no Umbral. Apenas vultos. Vultos que vão se tornando mais claros a cada minuto. E ele vai se desesperando, sofrendo novamente aquelas angústias e dores.

São muitas as perguntas. Porém, as dúvidas não podem ser respondidas agora. Ele precisa dormir para se recuperar. E é isso o que acontece. Antes de ir embora, Ágatha o faz adormecer e, para o bem de Sebastian, leva sua experiência no Umbral para o esquecimento.

É melhor esquecer-se de tudo, ao menos, por enquanto.


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