Daniel Campos

Prosas

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10/01/2014 - Ááá passará

Tem pássaro no abacatá, vem ver, vem ver que ele já vai vua. Tem menino carregando emborná, o que será, o que será que tem lá? Oiá que o tempo é touro bravo que corre barranco pra lá e pra cá, eita já vai desbarrancar. É céu de jequitibá. É gente de abadá. É abelha juá. É manga uba. Vamos derrubar! Eba! Eba! Quem vai falar? Quem vai ficar? É um gostinho de maracujá vindo para acalmar. São olhos de sabará vindos de acolá. Vamos bailar? E esse doce açucarará quando a gente mesmo esperar. O tempo nos mói em suas pedras fazendo fubá dos nossos dias. Tem dança no congá da rosa chá. O vento sacode o jequitibá. Ama quem é de amar, pois o amor nunca fica gagá. Chega quem é de chegar, que o tempo já vai vua. ...
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Abacateiro

Lá no sítio, no terreiro da primeira casa de um recém-casal, um abacateiro é testemunha do casamento que completa hoje cinqüenta anos. Há 50 anos, um casal chegava de mãos dadas naquela terra vermelha, onde casariam seus destinos, suas lutas, suas vidas. Nesses 50 anos, quantos galos cantaram pra eles a chegada de um novo dia. Quantas valsas seus corpos rodopiaram ao longo desses 50 anos. Quantas roupas foram colocadas pra quarar. Quantos almoços foram feitos em plena madrugada. Quanto de suor foi derramado por esses rostos. Ao longo desses 50 anos, quantas vezes esses lábios choraram e esses olhos sorriram. Quantos sonhos queimaram à luz de um lampião. Quantas vezes a égua Faísca os levou pela estrada afora. Quantas plantas, quantos animais, quantas pessoas fizeram parte de suas vidas ao longo desses 50 anos. Quantos foram os encontros e quantas foram as despedidas. Quantas dificuldades, quantas saudades, quantas vontades se misturaram ao longo desses 50 anos. Quantas vidas germinaram dessas mãos no decorrer desses 10, 20, 30, 40, 50 anos. A cada novo ano completado, uma nova semeadura, uma nova floração, uma nova colheita. Quantos dias nasceram, lado a lado, por entre o ubre das vacas. Quantos dias anoiteceram, lado a lado, na brasa do fogão. Quanta fé, quanta devoção, quanta reza ao longo desses 50 anos. Assim como o tronco daquele abacateiro, as mãos que agora recebem as alianças de bodas de ouro guardam marcas que o tempo não conseguiu esquecer. Mãos de Liberato e Adélia. Mãos de seu Líbio e dona Délia. Mãos de trabalhadores que cuidam da roça e cuidam da casa. Mãos de vencedores que cuidam dos filhos, dos netos e agora, de um bisneto. Mãos de sonhadores que cuidam um do outro, num amor à moda deles. 50 anos depois, mesmo com os galhos mais retorcidos e com as folhas mais desbotadas, aquele abacateiro oferece seu tronco para que a vida escreva ali mais uma página da história de ouro de um casal feito de terra, de esperança e de amor.


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20/02/2010 - Abacateiros

Depois de uma estrada alongada, entre o horizonte e o nada, desfralda-se um pomar de abacates. São milhares de árvores tão gigantes quão os titãs temidos pelos gregos. Além da altura que causa vertigem, suas copas são rodadas como os vestidos de antigamente. Tudo é verde. Mas não existe um só tom, há diversas tonalidades verdejando por aquela terra que por pecado de Deus é vermelha como os lábios dos anjos caídos. Ah! Quanto prazer posto no beijo dos pés com aquela terra.

Ali tudo é infinito. Não há som senão o dos abacateiros. E como eles contam histórias. O vento roça suas galhas e lendas vão caindo ao chão como pássaros sem ninho. As árvores dão idéia de proteção. Uma verdadeira fortaleza viva. Um labirinto onde habitam faunos e outras criaturas mágicas. Há uma leveza ali difícil de explicar. Às vezes se tem a impressão de que há uma crônica falta de gravidade. Há uma tendência ao vôo. Vôo livro. ...
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06/01/2015 - Abandono do abandonado

Asa de mosquito. Casca de barata. Antena de borboleta. Couraça de besouro. Fóssil de pernilongo. Tudo pelo chão acusando a falta de cuidado, a falta de habitação, as garras da solidão. Cama desarrumada. Poeira pelos cantos. Teias de aranha. Livros empilhados. Janelas fechadas. Portas emperradas. Panelas vazias. Rascunhos jogados. Vida embolorada. Ciscos trazidos por um vento invisível. Silencio e pó. Heróis e mocinhas esquecidos nas páginas amareladas dos romances que caíram da estante. Sonhos rasgados. Esperanças desbotadas. Velas queimadas, palitos de fósforo quebrados. Provas de abandono por quem abandonado foi.


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09/05/2015 - Abelha das uvas

As mãos tingidas bolinando pelos parreirais. A pele branca, da menina em feitio de santa, manchada de bordo. Nas pernas de lua, nas costas de algodão, nos lábios de cera, o tinto escorrendo doce. Brindes ao aroma cítrico e adocicado se fundindo pelas dobras frutadas que vão se abrindo pelo relevo de um beijo. Os parreirais constroem e descontroem e reconstroem casais. Os pés angelicais pisando as uvas, tirando o sangue das cascas turvas. O corpo da mulher-tinta se oferecendo à boca alheia como um cálice de vinho. Delicada e poderosa como as uvas que a enfeitam e deleitam ela vai embriagando os olhos que vão flertando com seus sabores oculares, olfativos, táteis... Parte dos parreirais, folha e fruto se cobrindo e se despindo dos sulcos e sucos das uvas que são verdes, rosas, roxas, vermelhas como sua pele camaleoa que vai sem véu brilhando ao sol e às estrelas como abelha que faz do vinho seu mel.


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29/12/2008 - Abelharuco

Lá vem o abelharuco-europeu tingindo o céu no seu colorido. Tem uma coroa marrom-avermelhada. Tem uma máscara preta. Tem um peito turquesa. Tem penas na garganta cor de sol entardecido. Lá vem ele tão lindo quão cruel. Para lhe valer o nome, come da abelha não o mel, mas o seu veneno. Lá vem o assaltante das colméias. Corram abelhas, corram do abelharuco, corram ovelhas, corram para ver o céu colorido de abelharucos. Abelharucos da Espanha ao Cazaquistão.

Lá vem o abelharuco da primavera enamorando o abelharuco do verão criando os filhotes e uma outra coloração. Lá vem o abelharuco à procura de colméias. Caçando abelhas e se esquivando do falcão e atravessando o estreito de Gibraltar. Lá vem o abelharuco espanhol acasalando com a fêmea africana, lá vem o abelharuco húngaro amando a italiana. Lá vem a jovem ave na contradança mais colorida dos céus buscando amores, parceiros e o amor para alimentar sua sede fel. ...
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16/11/2013 - Aberta a temporada do esquecer

Esqueça tudo o que traz a dor, o desassossego, o risco. Esqueça o que não pode nem deve ser lembrado. Esqueça o que não foi e não era para ter sido. Esqueça o que, de fato e para todos os efeitos, não aconteceu. Esqueça o triste e suas adjacências. Esqueça o verbo que não conseguiu ser conjugado. Esqueça o sentimento mais doído. Esqueça o mundo imaginário e todas suas consequências não menos imaginárias.

Esqueça o que, mesmo sem querer, faz sofrer. Esqueça o dia perdido. Esqueça o tempo desencontrado. Esqueça a brincadeira feita pelo destino nas tramas de nossas vidas. Esqueça o desejo pela impossibilidade. Esqueça a vontade de querer estar junto do que nasceu para ser separado. Esqueça o amanhã que nunca chegará. Esqueça os lugares comuns, que mesmo comuns, são de um só por vez. ...
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06/05/2010 - Abotoa-me enquanto lhe desabotôo

Ela chegou com um sorriso embotado nos lábios e um colar de botões abotoando seu colo. Aqueles botões de vários tamanhos tingidos de cores barrocas mexiam com meus botões. Uma coleção de botões delicados e rústicos, cantantes e tristes, fechados e abertos, presa a um fio de linha quase transparente aos meus olhos nus. Nus como a mulher desabotoada de botões.

Se eu fosse menino, jogaria futebol de botão pelo campo dos seios daquela mulher. Se eu fosse dançarino de tango, pegaria aquela mulher nos dentes como se pegasse um único botão, botão de rosa. Se eu fosse costureira, faria uma boneca, a imagem e semelhança dela, com olhos de botão. Se eu fosse deus, saberia quais botões mexer para acender, escurecer, ligar essa criatura? ...
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07/09/2008 - Abracadabra

- Respeitável público, com vocês o maior espetáculo da face da Terra, o inacreditável, o incomparável, o insuperável palhaço Abracadabra.

- Ei, seu apresentador, Abracadabra é nome de mágico e não de palhaço!

- Senhoras e senhores, queiram desculpar a intromissão do moleque de camiseta amarela ali da terceira fila. Ram-ram... Com vocês o inacreditável...

- Chega de embromação e chama logo esse palhaço!

- Mas não é possível?!

- Abaixa aí seu Oswaldo, que eu vou jogar esse tomate maduro na cara desse apresentador sem graça! ...
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29/07/2015 - Abraçaredo

Eu sei que vou lhe abraçar com todos os meus braços eu vou lhe enrolar em minha pele fazendo de nós um só casulo. E lhe envolvendo e querendo eu vou nos imortalizar num fóssil coração num tempo pra lá de bom. Vou, eu vou, vou lhe apertar em segredo e sufocar seus medos num abraçaredo. Eu sei que vou gostar, amar e me apaixonar a cada novo abraço. Vou abraçar suas pernas, sua cintura, seu pescoço, seus seios, seu dorso, seus fins, começos e meios. Eu vou abraçar seus tornozelos, seus joelhos, seus cabelos. Vou mergulhar com todos os meus braços em busca de seus abraços feitos de traços imaginários e concretos, mais que perfeitos, ao melhor do seu jeito, sentindo-me abraçado, amado e eleito.


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