Daniel Campos

Prosas

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29/04/2015 - Divirta-se

Roda seu corpo no meu como se roda-gigante fosse num parque de diversões. Viaja em meus trilhos levando ao menos um desejo em cada um dos seus milhares de vagões. Gira como se fosse de santo e joga feito capoeira debaixo do pé de aroeira. Bota quebranto no próprio espelho tamanho seu encanto guardando-se debaixo do manto da mãe senhora. Fala de suas vindas, suas bem-vindas, suas boas-vindas, jamais do seu ir, do seu ir embora. Escorrega pelas nuvens tapando os ouvidos ao tempo que ruge em busca da mulher-menina-moça que cora suas maçãs como se as manhãs nuas as trouxessem pitadas de rouge.


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28/04/2015 - Indicações

Minha paz é o desassossego do mundo. O melhor do meu tempo é o próximo segundo. seu teto é o meu fundo. Nossos corações estão alinhados entre Júpiter e Saturno. Sempre fomos do mesmo turno. Teremos menos do que já nos foi muito e muito mais do que já nos faltou. Nosso sacrifício futuro já nos absolveu no passado. Os braços direito e esquerdo no abraço trocam de lado. Ao jogar a âncora marinheiro que é marinheiro pede licença ao mar. A aranha só tem oito pernas se a gente contar. As pedras se beijam com suas bocas duras e sempre há uma lua perdida na noite escura. Vaca esperta pasta de marcha-ré. Leite bom se levanta na primeira fervura. E sereia é metade peixe ou metade pássaro e metade mulher.


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27/04/2015 - Essa tal gravidade

Se não fosse essa tal de força da gravidade nós poderíamos andar nas nuvens sem nos prender a nada. As árvores ficariam de ponta cabeça, com raízes descabeladas aos céus e frutos ao alcance das mãos dos mais pequeninos. Os peixes nadariam por outros azuis e os pescadores poderiam fisgar anjos distraídos. A terra não prenderia ninguém, todo e qualquer corpo seria alforriado. Seríamos como balões de gás namorando pelo horizonte. Voaríamos, flutuaríamos, boiaríamos como astros e estrelas que somos. As pedras da calçada, das montanhas, das geleiras diriam que estávamos enganados sobre seus pesos, pois levitariam sem precisar de mágica. Ah, se a força gravitacional não nos atraísse arbitrariamente o universo nos seduziria muito mais. Não teríamos endereço fixo, pois nossas casas não parariam no lugar. Seria o caos se o caos não fosse o hoje, da forma como se está tudo aparentemente no lugar mas realmente tudo, do raso ao fundo, de pernas pro ar.


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26/04/2015 - Paixão circense

Pendura seu corpo no meu. Vamos às alturas. Ilumina o meu breu. Vamos ser circenses. Viver a paixão no picadeiro. Saia da minha cartola. Envolva-me em seus truques. Pula como se de mola. Atarraque-se na minha gola de palhaço. Cavalga no meu passo. Abusa das acrobacias. Pula no vazio. Causa-me arrepio. Encha a plateia – meus olhares – de alegrias. Estica a lona da ilusão. Dê por aberta a temporada da imaginação. Rola comigo pela serragem entre estrelas, bananeiras e cambalhotas. Beija-me de pipoca. E no alto do trapézio me provoca.


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25/04/2015 - A comitiva vai partir

A noite se joga do seu alto no meio do pasto. O gado dorme orvalhado. Não há mugido nem refestelo qualquer, só o vento que caminha na ponta dos pés agasalhados por meias de lã. O boiadeiro, depois de um dia suado na lida, dorme acalentado pelos seios de sua sinhá. Sabe que a seca está por vir, que o pasto vai secar, que vai ter que tocar o gado pra longe, numa comitiva de sobrevivência, e que a saudade daquela morena vai doer fundo no peito. Por mais que essas preocupações cresçam em sua cabeça como sementeira depois da chuva, encontra paz naquele colo para sonhar seus sonhos. E a morena, do alto de sua meninice, correrá pra janela toda vez que ouvir um berrante pensando que seu amado está voltando ou entoando pra ela. A filha, que começou a engatinhar, não entende muito bem essas idas e vindas do pai, tampouco o choro da mãe quando ele não está. Vai sentir falta mesmo de ver as vaquinhas no pasto, pois gosta tanto de ficar vendo aqueles bichinhos brancos feito algodão no meio do capim verde. E toda vez que escuta um mugido abre um sorriso. Não é à toa que se sente ligada aqueles bichos, pois em razão de não pegar o peito foi alimentada desde sempre pelo leite das vacas. O pai ainda brincava de coloca-la em cima do lombo das mais mansas. Partir com aquela comitiva não seria fácil. Partiria não só o chão trincado como afetos que não se explicam. Mas enquanto o adeus não chegava, aproveita para suspirar naquela pele fresca como a brisa que entra pela janela, sacudindo as cortinas que revelavam uma lua circulada de vermelho, numa profecia ocular de estiagem.


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24/04/2015 - Coração adormecido

Passaram-se séculos até que o coração finalmente sossegou. Foram centenas de anos ainda em chamas, queimando um amor altamente inflamável. Sabia que seria assim, mas quisera apostar todas as suas fichas nesse romance que tinha tudo para dar errado. E deu, mas enquanto foi vivido foi tão intenso quão incrível. Aceitou entrar de corpo inteiro naquele fogo que consome tudo e todos mais e mais numa doação energética crescente. Como vulcão que cessa depois de séculos de erupções seguidas, o coração agora está adormecido. Finalmente pode encontrar a paz, mas apaixonados ainda preveem novas ebulições. Basta que certa boca ou que certos olhos o acordem. Até lá, eis o descanso dos injustos.


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23/04/2015 - Revirados

Tudo revirado. Tudo bagunçado. Tudo deslocado. Dentro e fora de mim. Cabeça em órbita. Coração em queda livre. Sonhos como cometas se vão distantes. Estrelas piscam como minha memória. As constelações me dizem muito e nada ao mesmo tempo. Sou navegante do espaço. Enquanto dormem contando carneiros ou expectativas, sou a própria insônia. Estou entre o pesadelo e o sonho bom, atravessando fronteiras entre planos terrestres e astrais. Sou a última nau levando o que sobra de poesia nisso tudo.


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22/04/2015 - O galo do dia

Galo cantou alumiando o dia. Gato roncou no telhado português. Poeta cantou sua poesia pro cachorro maltês. O jornaleiro queria falar de amor, mas amor não vende jornal. O carro não pegou de primeira e diante da ladeira quem é que empurrou? O vento o passado não carregou. E o profeta professou tanto que santo de casa não faz milagre quanto que até o melhor dos vinhos pode virar vinagre. A menina pediu fé. O menino pediu mulher. O galo sem saber qualé cantou puxando o dia que não queria sair da toca. A lua provoca de baby-doll transparente, inocente, envolvente... O cego de paixão tropeça procurando suas lentes. Por entre estrelas atrasadas há dança de salão, dança do ventre, dança de corpo presente. Dizem amém e ah nem com a mesma força. O choradeiro de quem perdeu um amor de verão fez uma poça no meio do estradão. Clareia, mas pela cidade já não passa mais boiada, não tem mais café na cama pra namorada, não se toca mais o sino pra chamar pra benção do galo. O galo já desistiu de se maestro do dia e anda atrás de uma galinha que só quer sabe de encher sua moela. Enquanto isso, o dia, sem freio ou esteio, desce na banguela...


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21/04/2015 - Atenção, muita atenção

Se mexer a massa ao contrário, o bolo não cresce. Se capinar de trás pra frente, o mato brota. Se estiver com dó, o porco não morre. Se tiver coragem, já foi metade do caminho pra perca do juízo. Se atrasar o relógio, atrasa-se a vida. Se o pássaro cair é porque o mundo está de ponta cabeça. Se o nó for cego, o corte é certo. Se a encruzilhada estiver aberta, peça licença. Se os porta-retratos estiverem vazios, o passado está por um fio. Se o vento virar, pode esperar pelo que não quer ouvir. Se tentar descobrir quem pintou a onça, devorado será. Se o jardim secou, a primavera falhou. Se o suor for doce, a emoção vazou. Se um beijo for roubado não deve ser devolvido, mas creditado e jurado para render e ser cobrado. Se a roda não virar, o mundo virou um quadrado com um amor perdido em cada canto.


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20/04/2015 - Jogue-se

A hora de virar o jogo é agora. Não pense duas vezes antes de colocar seu instinto pra fora. Arregace as mangas e coloque todas as cartas sobre a mesa. Aposte. Blefe. Jogue. Vá até o último suspiro. Corra todos os riscos. Sem medo. Sem receio. Sem pavor. Sua vida é a sequência de jogadas. Quanto mais adia o jogo, mais adia a vida a ser vivida. Nunca dê sua história como lida. É preciso ir além do óbvio. Invente seu jogo. Inverta o jogo. Sinta o jogo. Jogue-se nesse jogo que é a sua vida.


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