Daniel Campos

Prosas

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Encontrados 3193 textos. Exibindo página 56 de 320.

09/05/2015 - Abelha das uvas

As mãos tingidas bolinando pelos parreirais. A pele branca, da menina em feitio de santa, manchada de bordo. Nas pernas de lua, nas costas de algodão, nos lábios de cera, o tinto escorrendo doce. Brindes ao aroma cítrico e adocicado se fundindo pelas dobras frutadas que vão se abrindo pelo relevo de um beijo. Os parreirais constroem e descontroem e reconstroem casais. Os pés angelicais pisando as uvas, tirando o sangue das cascas turvas. O corpo da mulher-tinta se oferecendo à boca alheia como um cálice de vinho. Delicada e poderosa como as uvas que a enfeitam e deleitam ela vai embriagando os olhos que vão flertando com seus sabores oculares, olfativos, táteis... Parte dos parreirais, folha e fruto se cobrindo e se despindo dos sulcos e sucos das uvas que são verdes, rosas, roxas, vermelhas como sua pele camaleoa que vai sem véu brilhando ao sol e às estrelas como abelha que faz do vinho seu mel.


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08/05/2015 - Bendita a cigarra

Nas águas da mãe-chuva, capim cresceu, vaca chegou, comeu, adormeceu. O galo cantou como se fosse o dono do espetáculo o novo dia num tom mais que enfático. A formiga sem saber que dia era trabalhou, cortou, retalhou, carregou a folharada pela sua estrada. Dona margarida se abriu pras bandas do brejo branqueando um rio que não era o tejo mas tinha sotaque português. E o sabiá virou freguês da amoreira depois de uma semana inteira no pé de ingá. Veio vento de cá, de lá e acolá botando as folhas para dançar. E o sapo se inchou todo e coaxou querendo no lodo namorar. Cumprido o seu papel, com fanfarra e algazarra, depois da chuvarada, a cigarra amarra sua casca seca à árvore e vai pro céu. Bendita seja a cigarra e a sua farra.


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07/05/2015 - Tintura

Pisa de vermelho chamando-me à loucura. Caminha de azul fazendo-me perder toda e qualquer bravura. Vem figurativa, abstrata e concreta ao mesmo tempo. Imprima em mim a gravura do seu desejo. Coloque-me perdido na sua perspectiva. Vem verdejando meus campos num verde que é só seu numa natureza viva repleta de texturas e tonalidades. Tira do tempo esse tom desbotado, levando-me o viço da demão do novo pela sua mão. Toma meus dias com sua cor e fala-me de amor entre tintas e pintas. Pinta-me, tinta-me, sinta-me em suas cores mais quentes. Joga-me na sua paleta, misturando meus olhos de guache aos seus altos-relevos. Façamos beijos craquelados dando, pouco a pouco, o acabamento mais que perfeito e sonhado. Dilua seus sonhos no que lhe proponho como arte. E muito cuidado para que a saudade não venha como aguarrás.


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06/05/2015 - Ouça os pássaros

Ouça, ouça os pássaros. Eles trazem mensagens de mundos distantes. Ouça os pássaros que não passam por acaso. Eles cruzam nossos céus, pousam em nossas janelas, passam sobre nossas cabeças, dependuram-se nas árvores do nosso quintal por alguma razão. Ouça os pássaros, aprenda a decifrar cada canção. Pássaros são mensageiros de outros reinos e tempos falando a língua do sentimento. Aos seus estralos, calo para ouvir, ouvir os pássaros. Ouça, ouça o que dizem, revelam, querem contar. É muito mais fácil ouvir os homens, mas os homens não sabem voar. Ouça, ouça os pássaros e você só terá a ganhar. Entrega-se à melodia da passarada que faz revoada para seguir a estrada como seguem as constelações. Ouça sem resistência, sem porquês, sem senões. Ouça, ouça os pássaros que falam diretamente aos corações. Abra os ouvidos e as entranhas ao que diz o pássaro e seja feliz, pois o pássaro que vem é o que você merece, traz o que na hora lhe convém, jamais o que quer ou quis. Ouça, ouça os pássaros cujos estralos dobram qualquer aço e orientam seu compasso.


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05/05/2015 - Meu pai, ó veja só...

Meu pai, ó veja só, deixa eu lhe mostrar a nova de Caetano. Entre um verso e um universo, vou lhe falar dos meus planos. E quando Caetano parar de girar na vitrola não chora nem vá embora pois vou colocar para rodar o piano do maestro soberano que tal e qual você a gente ama e se chama Antônio Carlos. Ó veja só, um é Jobim, passarim; Outro é rato, Ratz. Antes do fim, vamos por partes. Aqui ou em Marte a gente se encontra por meio da arte. Que tal algumas páginas de um poeta português. Ou será que a pedida do dia são os quadrinhos de um certo gaulês. Asterix, Obelix, Ideiafix. E quando tudo se acalmar que tal o repique da bateria da nossa verde-rosa. Olha pai, meu pai, lá vem Cartola puxando a nossa escola que é vizinha da azul e branco de Paulinho da Viola. Música para gente não é de araque. Somos de tirar acordes da manga feito Mandraque. No nosso dicionário Manda-Chuva é um gato, a página dois da Folha é um porta-retrato e Chico Buarque é rei de direito e de fato. Meu pai, ó veja só, descobri um disco da Clementina com Adoniran agora pela manhã enquanto você estava na banca comprando Tio Patinhas. E viva a vida hoje tem arroz com carne-moída. E antes de pegar a estrada, aceito uma dose de Vinícius, uma pedra de Drummond, mais um som do nosso Tom e uma fatia de marmelada ou uma colher de abóbora bem apurada.


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04/05/2015 - Num dia, noutro dia

Num dia ela me chega e me arranha. Noutro dia ela me chega e me apanha. Numa semana ela quer viver em Copacabana. Na outra semana, ela não arreda pé de ser suburbana. Num mês ela me ama. Noutro mês ela só quer cama e me acama. Num segundo ela quer casar. Noutro segundo, já quer separar. Num ano ela é só bondade, faz amor e caridade. Noutro ano ela é só tempestade, faz amor e saudade. Num minuto ela fala que tudo entre nós é para sempre. Noutro minuto, ela professa que somos tão livres quão as sementes. Num tempo ela mente. No outro tempo, já se desmente. Numa hora ela me chama para perto, para mais perto, e chora. Noutra hora ela me emburra, me empurra e me manda embora. Num quê ela me leva como buquê. Noutro quê, sem porquê, ela não me crê nem me vê. Num passo ela me dá um abraço. Noutro passo, crava em minhas costas o seu aço. Numa volta ela me se diz que se importa. Noutra volta ela diz que nunca mais volta, que nem morta, e me bate a porta. ...
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03/05/2015 - Que seja bem-vinda!

Você chega falando palavras estranhas como se eu não soubesse lhe decifrar. Você chega fazendo pirraça como se eu não pudesse lhe amar. Você chega entrando pedindo licença como se eu fosse de cerimônia. Você chega tomando minhas bebidas, as permitidas e as proibidas, como que querendo brigar. Você chega me testando, roubando-me a paciência, atiçando-me a querência, exigindo-me toda e qualquer parcimônia. Você chega encenando a demônia esperando que eu seja anjo de sétimo céu. Você chega com a beleza das feras que adormecem exalando primaveras. Você chega com olhos de catedrais e mãos repletas de punhais. Você chega e me dobra como se eu fosse de papel. Você chega como quem não fosse chegar e quando menos se espera já está de partida como se a chegada se fundisse com sua ida e assim, sem começo nem fim, eu entoo: linda, que seja bem-vinda.


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02/05/2015 - Vidinha do mato

Nunca quis vida de novela. Não sou do asfalto nem da favela. Sou do mato. Nunca fui de contentar em ver a vida passar debaixo da minha janela. Sou simples, mas de fino trato. Na minha aquarela, as cores se casam, e se misturam e se lambuzam. Não quero que nada caia do céu, mas não admito que roubem o meu papel. Sou dono da minha cena. Sou a alma do poema. O amor é o meu lema, minha lança e o meu escudo. Sou sonhador, rei do meu ludo. Lá, e ainda lá, tenho nada e tenho tudo. Sou do alecrim, da arruda, do guiné... Sou do povo da fé. O tempo brinca em meus canteiros. Cada esperança é uma corda que me sustenta. Sou violeiro que inventa moda em penca. E não acredito no azar da avenca. Sou da roça e o destino não se dá a quem não se coça. Na minha viola ganho mola, vou às nuvens e faço bossa enquanto sinhá anja me roça e adoça.


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01/05/2015 - Ela foi além de si

Ela não adiou sua vida por ninguém. Tomou seu rumo tratando obstáculos com desdém. Ignorou todo e qualquer porém e foi além do que muitos acreditavam ou lhe davam. Botou na bagagem apenas o necessário, ou seja, ela. Fez de seus braços suas asas, de suas costas sua caravela e do seu ventre, sua casa. E como não era defunta de cova rasa, foi a fundo em tudo o que se propôs não deixando nada para depois. Em suas contas, um mais um nunca deu dois. Tudo ela tirava a prova e se reinventava a todo instante. Era amante de si mesmo. Ah, como gostava de si. Um albatroz no corpo de um bem-te-vi. Ganhou mundo e não se arrependeu nem por um segundo de ter se doado ao futuro sem jamais ter sido passado. ...
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30/04/2015 - Canta, canta, canta

Canta que as coisas vão melhorar. Canta e espanta o mau-humor pra lá. Canta sem se importar se desafina. Canta como se fosse pássaro, cigarra, sapo. Canta pelas esquinas, no chuveiro, no quarto. Canta na hora do parto. Canta pela terra, pela nuvem, pelo asfalto. Canta pelas curvas e até debaixo de chuva. Canta com a alma na garganta. Canta sua força tanta em cada nota. Canta e se agiganta. Canta para além das portas. Canta tirando os pés do chão, dançando nos braços da imaginação. Canta para aliviar o choro. Canta para tirar o mau-agouro. Canta para mudar os rumos. Canta para entrar no prumo. Canta para fazer tudo novo e diferente. Canta o que sente. Canta cada vez melhor o amor maior. Canta fazendo de sua cantoria sua via. Canta entre o silêncio e a pausa e (se) encanta. Canta, canta, canta maior o amor melhor.


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