Daniel Campos

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Encontrados 254 textos. Exibindo página 9 de 26.

14/07/2011 - Pedaços, buracos, vazios...

Era como se lhe faltasse um pedaço. Ele tinha dois braços, duas pernas, um nariz, uma boca. Parecia completo. No entanto, só parecia. Levava um vazio no peito. Tinha uma esposa, filhos, parentes, amigos. Trabalhava no que gostava e viajava pelo mundo. Mas isso não era suficiente. Faltava algo que ele não sabia explicar. Talvez um perdão. Mas ele não fazia mal a ninguém e também não guardava rancor. Era difícil roubar-lhe a paciência, o sono, o sorriso.

No entanto, seu sorriso tinha sempre um pontinho amarelo. Faltava-lhe algo. Mas como? Casou-se com a mulher pela qual é perdidamente apaixonado desde a juventude. Mora na casa que construiu do seu jeito, no lugar que queria. Tem a coleção completa dos Beatles e todos os sonetos de Shakespeare. Como o que tem vontade, bebe até se dar por satisfeito, fuma quando lhe dá na telha. Conta com uma quantia gorda em sua conta bancária e é motivo de inveja. ...
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06/11/2015 - Pedaladas

De bicicleta ela pelada pelas ruas sem medo, sem grades, sem regras demais. Avança sinais, sobe em calçadas, corta jardins, faz suas próprias estradas. Passa por senhoras, por bandidos, por crianças, por padres fazendo seu ritmo. Não sabe quantos aros tem suas rodas nem tampouco quantas voltas já deu, mas sabe que se chamasse Julieta já teria o seu Romeu também vindo de bicicleta. Não gosta de poesia nem de poeta. É mais do rock e se amarra no croc-croc da mudança de marcha. Acha que tudo é matemática, física, química, vida exata. Porém, no selim da bicicleta faz festa e joga tudo pro ar. São novos teoremas e não importam mais os velhos dilemas. Apaixonar-se? Casar-se? Pra que? Com dois, por mais que seja por vezes divertido, fica mais difícil se equilibrar na bicicleta. E esperta como só não quer seguir a passeio, pedala e mostra a que veio.


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20/09/2008 - Pedaladas verdes

O menino pedala sua bicicleta estreita, levando no guidão uma sacola de plástico com sete, oito, nove mangas verdes. Levava a caipirice da manga comum, que não fora batizado com nome importado algum. As mangueiras, festeiras depois do retorno da chuva, exibem suas pencas de mangas. É como se estivessem enfeitadas para a primavera. E as saias verdes, bem rodadas, que se espalham pelo concreto da cidade são de encher os olhos de qualquer um. E, passando por debaixo dessas saias, numa mais que completa meninice, o menino avança com sua bicicleta grená. ...
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22/07/2010 - Pedidas

Para os fracos, coragem. Para os medrosos, confiança. Para os cansados, ânimo. Para os necessitados, tudo. Para os descrentes, nada. Para os inseguros, determinação. Para os aflitos, alívio. Para os desesperados, fé. Para os loucos, a glória. Para os criminosos, a escuridão perpétua. Para os arrependidos, um caminho. Para os mentirosos, a dor da verdade. Para os falsos, a solidão. Para os apaixonados, o desejo. Para os frívolos, a chama.

Para os doentes, alma. Para os alunos, a sede. Para os profetas, o silêncio. Para os egoístas, a partilha. Para os soberbos, a dúvida. Para os jardineiros, rosas e margaridas. Para os santos, a prova. Para as mães, o elo. Para as crianças, contos de fada. Para os trabalhadores, sal. Para os ausentes, o peso de suas atitudes. Para os agourentos, o azar. Para os hipócritas, a consciência. Para as bocas, beijos e palavras. ...
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24/12/2013 - Pedido inusitado

Bicicleta? Videogame? Super-herói? Nada disso, o menino da véspera não queria nada disso. Festa? Viagem? Dinheiro? Também não. Sabia que ainda era criança e que podia pedir o que quisesse para o papai-noel, que logo mais chegaria com suas renas e seu ho-ho-ho. Diferentemente dos outros anos, ele não escreveu uma cartinha ao bom velhinho. E não foi por falta de querer um presente, mas ele não sabia como pedir algo tão especial. Ele tinha se comportado, sido um bom menino durante o ano. Havia passado de ano na escola, tentado ao máximo não fazer ninguém triste e praticado algumas boas ações. ...
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18/08/2014 - Pedindo e aceitando pedidos

Peço um chuveiro para dois, e uma cama para dois corpos se tornarem um. Peço um nó de marinheiro entre meus braços e sua cintura e doses e overdoses de um amor à flor da loucura. Peço um ciúme bem temperado e cortes de paixão que se perdem entre o adocicado e o amadeirado de certo perfume que me deixa incerto. Peço um viveiro, pois havemos de nos despir dos pares de asas e fazer do chão a nossa casa, mas com a promessa de jamais deixarmos as nuvens. Peço corações à prova de ferrugem seja temporal seja atemporal. Peço um delírio de casal. Peço um colírio zodiacal. Peço que simplesmente permitam o encaixa natural. Peço uma fusão de reflexos no menor dos espelhos. Peço rotações de tornozelos e cenas de cinema com dor de cotovelo. Peço a erupção de sentimentos com direito a calores intensos e visibilidade zero. Peço que a lua seja como uma vela boiando e queimando pela continuidade dessa união. Peço a oportunidade de matar a sangue quente toda e qualquer saudade. Peço que imitemos os lobos e nos cacemos e nos protejamos e nos queiramos e nos uivemos. Peço que o instinto seja nosso labirinto particular. Peço para jogar, para brincar, para não parar, para intensificar, para avançar, para escandalizar, enfim, para cortar suas raízes e lhe virar de pernas para o ar. Peço a estadia desse romantismo renascentista que vai de encontro a sua curvatura. Peço o devido acompanhamento ao seu fôlego de atleta. Peço uma janela secreta e uma coleção de fantasias indiscretas. Peço mãos cegas que tateiem tudo sem saber distinguir os avisos de proibido. Peço pedidos aos pés do ouvido.


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18/02/2014 - Pedindo você ao mar

Perdi as contas de quantas vezes olhando pro mar eu pedi você a Iemanjá. Foram tantas ondas que se quebram no meu olhar, fazendo-me sal e saudade. Ah! Como eu queria que você surgisse daquele mar com cabelos escorrendo pelo rosto e pelas costas e me beijasse com sua boca quente e úmida. Que venha com essas pernas que fazem barco virar com esse balançado pra lá e pra cá. Ah! Iemanjá, Iara e as sereias do espaço bem que podiam me escutar e lhe trazer pra estes braços que estão sempre abertos pra você....
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Pela frente ou pelas costas?

A campainha se oferecia, se esticava, tentava ser uma perna cravada na parede... Mas suas mãos de esmalte corroído por dentes nervosos temiam-na. Ou melhor, temiam o que existia por detrás da campainha. O portão, feito com um jogo de barras de ferro, impediam seus olhos de avistar o que existia lá dentro. Ela rabiscava os ouvidos naquele concreto grosseiro do muro só para ver se escutava algo. Ela só ouvia os tijolos conversando. Ela ficava sem graça quando algum vizinho começava a olhá-la com um pouco mais de atenção. Logo disfarçava, fingia estar esperando ônibus, depositando cartas (levava sempre envelopes na bolsa) e até ser uma moradora daquelas calçadas....
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09/01/2016 - Pela língua, pela boca...

Movimenta a sua língua na minha e pela minha boca. Raspa as palavras da minha garganta como quem tira o melhor do doce do fundo do tacho. Foge dos meus dentes que se caírem aos desejos do meu eu mais carente vão tirar pedaço de você. Vasculha a poesia que adormece pela minha boca esperando a hora certa de nascer. Toma para si os meus gritos e silêncios, os meus gostos e paladares, toca a minha campainha e escorre pelos meus lábios como abelha rainha no mel. E, antes de sair, vá ao céu da minha boca e acenda sua estrela para vê-la brilhar por você chegar.


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21/03/2016 - Pela não omissão

Por mais que não acredite, o meu caminho é mais do que um convite. É missão. É sina. É sacerdócio. É um reencontro com minha casa, comigo mesmo, com o que eu pedi para mim. Não espero que aceite, mas que respeite a minha escolha de ser. Sou do outro, para o outro, pelo outro. O outro é o meu sentido. Por isso, a minha doação, a minha entrega, a minha divisão entre o céu e a terra. Eu não sofro, não sinto dores, não tenho sofrimento algum no que faço. O meu passo é para frente buscando o que eu um dia pelas mais diferentes razões, deixei incompleto. O meu trabalho é o que me leva adiante, o que me dá sentido, o que me renova, fortalece, redime. Nada me oprime senão a falta de poder fazer algo por quem tem dores, horrores, pavores maiores do que os meus. Trabalho, trabalho, trabalho para que não volte a chorar pelas oportunidades perdidas. Pior, muito pior, do que chorar por uma despedida, pela perda de uma vida, por uma esperança partida, é chorar pelo que teve condições de realizar e não realizou. Pior, muito pior, do que errar por agir é errar por omissão.


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